Canção
Resisto a tempestades.
Não acredito em contos de fadas.
Meu grande amor morreu pequeno
— sem lápide ou despedidas.
Dedico a ele canção e liberdade.
Esperança, ainda que tardia
é arte sem demagogia.
Dedico-me ao desejo de ser
sem rimas e com defeitos.
Qualquer semelhança com ficção
é mera poesia.
Bolsa de Valores
Meu vizinho, sujeito cordato
celebrou efusivamente
a escolha do eleitorado
Classe média rasa
bom rapaz branco
Cheio de dívidas no banco
Bate palmas, emocionado
por cada corpo negro alvejado
Refém do fanatismo escroto
cristão racista e bom moço
Feliz com seu diploma de macho:
Bandido bom é bandido morto!
Mas se é compadre
filho, miliciano e
ministro estimado
Tá tudo abençoado
pelo Deus Mercado
Recalque
Faça um favor a si mesmo,
se olhe no espelho
contemple a insanidade coletiva
Observe a ignorância servil,
dos moralmente asquerosos
"discípulos" do Senhor.
Preste bem atenção à palavra de ordem,
aos homens de bem com suas cativantes armas de extermínio
São todos farinha do mesmo saco?
São todos bandidos do mesmo ofício?
Pense bem nas escusas cínicas do ex-juiz
na simpatia tóxica da ministra
na estupidez crônica do filho do capitão
Pense no pó
no nióbio
na milícia
no subemprego
Pense
no risco desnecessário em ser otário
Se compadeça
dos corpos ameaçados dos meninos e meninas
da morte em plano sequência da população indígena
Faça um favor a si mesmo,
não se estabeleça
no avesso desse "pacto civilizatório"
na premissa desumana
de soterrar vidas na lama
Há tempos o país agoniza na sala de justiça
Quantas laranjas são suficientes para engordar o gado?
Faça o cálculo
e esprema o pus de toda essa ferida.
Marielle
Difícil render-se ao esquecimento
da grande máquina
e não defender
a geografia na carne.
Minha gente
sangra desde sempre.
Ardermos na fornalha
que alimenta paraísos fiscais.
Inútil disfarçar o banzo,
a pele é vestido.
Mas se pudesse
voltaria o tempo
Sim, eu sei,
é impossível,
os relógios não são amigos
As meninas choram
e se abraçam inconsoláveis
na avenida.
Na violência da ausência
homens são meninos.
Uma mulher não é apenas uma fotografia,
agora é um país.
Mapa
Minha avó, índia pataxó,
desconhece a minha geografia
de estranhas ramificações;
grão de quintais sem muros,
filha de desertos e oceanos imaginários
No corpo que vesti
não inventei assombrações
inverno, tesouras e agulhas.
Não se desata um nó
que não se costura.
Mas ainda não nasci,
estou na caixa.
Sou verbo
asma
máquina de escrever
partitura.
Se a noite é tão sem graça,
sem afagos e amores incontidos
A menina vem à porta
e me desperta no abismo
Rascunho
O peso da minha utopia
não responde por convicções alheias,
não faço por menos
e não aceito previsões de morte súbita.
Escrevo enquanto
violinos choram nas janelas
Não sei falar do pássaro que roubou
o meu poema
São três horas da manhã
de uma vida inteira
Na palma da minha mão
pulsa o útero da primavera.
Estrondo
Quando me calo
é tanto barulho por dentro
que nada, nada mesmo
me faz soneto.
Quando danço
não tenho par,
nem coreografia.
Não articulo saudações líricas
Não deixo recados para o futuro
Não admiro leões no zoológico
Não vendo ofertas na vitrine.
Quando me calo
sei meu norte e minha guia
Deus sabe onde começa e termina a poesia?
Haicai
pétala que cai
na nuvem
chuva
Agora é inverno
Do outro lado da rua não te vejo
Faço brincadeiras hostis,
avanço o sinal vermelho.
Dispenso justificativas,
os morcegos são infelizes,
os jornais queimam no inferno.
Não há legumes na geladeira,
canções na vitrola
e cartões de natal.
É inútil domar o vento
que derruba árvores.
É inútil abençoar
o que não tem conserto.
É necessário ser mais e mas.
Arrancar raízes,
vociferar contra monstros
que nos sufocam todo os dias.
Agora é inverno
Do outro lado da rua te vejo.
Faço promessas que não posso cumprir,
adormeço quando não posso dormir.
Envelheço.
Memória
memória é uma gaveta de entulhos
um quarto úmido, um dente quebrado
uma terra seca, um rio sem barco
memória é fardo
paredes tortas, muros encardidos
é um gato preto com seu miado infantil
um prato cheio de verdades mesquinhas
é linha
sem reta
é promessa
dívida e cheque sem fundo
é murmúrio, lâmina, pulso, sílaba tônica
adeus sem cemitério, goteira, inferno
memória é choque elétrico,
cadeira vazia, tapa no externo
é tv preto e branco, vermelho sem rosas
droga, vacilo e remédio pra utopia
é precipício, ladeira, trampolim
para insanidade, saudade do futuro
quintal sem galinhas
memória é chuva no escuro de 1977
é barro, Neocid e queda do telhado
memória é deitar sem alegria,
escrever sem rimas, dançar sem ser
convidado, é correr para o castigo,
é apanhar com um sorriso e devolver
o perdão para o carrasco
memória é azul piscina, é vela sem santo,
disco voador, céu de aquarela, é música
para quem quiser ouvir, a quem não quer calar:
Na simples e suave coisa
Suave coisa nenhuma*
*João Apolinário e João Ricardo (Secos & Molhados), em "Amor".
Túmulo dos vagalumes
Enquanto papai e mamãe se odiavam
e Júlia chorava, estendendo a roupa no varal
as larvas se multiplicavam
e dançavam sob o sol.
Zeza batia com zelo
e não escrevia sonetos:
— Salve Rainha, Salve!
Engula o feijão e o sorriso!
Não há possibilidade de fuga,
não existe paraíso.
Bem aventurados os porcos,
eles são vizinhos desse inferno.
Tudo ainda dói,
tudo é pretérito:
os ossos
a perversão
a carcaça
a culpa
o sexo
Aprendi a semear florestas incendiadas,
enfrento exércitos e tapinhas nas costas.
Não tenho mais cinco anos
Os vagalumes estão mortos.
Todos estão mortos!
E Júlia, há muito tempo, não me espera voltar.
Res amissa
Atiro pétalas,
a Aurora não é minha.
Vagueio pela memória
como criança
a procurar por quintais.
Não há sinal da Santa Cruz
que alimente esse deserto
mas da janela do passado,
um rio, por inteiro,
ainda deságua em mim.
Porto
O mar me olhou nos olhos,
tenho fama de difícil,
me afogo fácil.
Sei tão pouco de tudo
Sei tão pouco de tantos.
No horizonte
os barcos navegam
e Deus não escreve fim.
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