©congerdesign
 

 

 

 
 

 

 

 

CRIAÇÃO



dos múltiplos significados da palavra

abandono, não gosto das traças na parede

crescem no vazio branco de pedra e cal

e nada mais se atreve

deito os olhos e esqueço


gosto do abandono que é destruição

gosto da casa que esconde sua alma sob os escombros

quando se afoga no próprio vômito


quando ouvi al berto dizer

que a impaciência com a poesia é idiotice

tinha na boca o mar

um abandono de azul, de ondas

senti o gosto enferrujado do sangue 

e do sal.







COISAS QUE APRENDI NOS LIVROS



quando sinto amor

ou desconfio

rapidamente me ponho

a dar voltas no quarteirão

correndo


quando não, enfio uma ponta

de lápis debaixo da unha

dá no mesmo.







PARTITURA



atentar aos sinais

na descoberta de outro caminho

— mapa de mergulhar os pés —

dançar em mar aberto


: alcançar o leste.


p.s. antes que a ferrugem devore o barco

e a última página nos tire a sorte

abra as janelas

adiante há de nascer a terra

a selva nos teus olhos

o céu claro.







PARIR É UMA METÁFORA



Para Alice Guy Blaché



embora excitada com a ideia

de uma cegonha enfiando o bico

na pureza assexuada

a falta de orçamento para penas

e sangue cenográfico

me levou à realização da fada

que arranca meninos de repolhos

na horta do quintal

foi o máximo ouvir o berro

dos operários enquanto ela apagava

o número de série do bebê

que reluzia na cena final.







ENQUANTO ESTAMOS AQUI



que palavra

suficientemente durável

podemos encontrar

no fundo da xícara 

que não lamente o fim

de outra manhã 


que atravesse o precário

à medida que nos afastamos

de prédios e ruas 

para tingir de amarelo

(como a cera que acumula)

os ouvidos daqueles que

cumprimentamos


palavra plural e indivisível

que conte às nossas crias

a origem e o fim das formas vivas

e sobre a inanimada poeira

varrida do quintal

a palavra suja 

da experiência finita, imensa

do pelo crescido sob a roupa

da cicatriz que escreve no corpo

a memória da dor

e o prazer inigualável de existir.







COMO TRANSFORMAR TIJOLOS EM BATERIAS



em situação de rua, janete ganhou uma cama com milhares de quilômetros quadrados. tem extrema dificuldade em arrumar um cobertor que caiba. não sabe qual a sensação de escolher um lado. o meu é sempre o da esquerda. faz fronteira com o quarto de heitor. encosto meu corpo na parede, ouço sua respiração e adormeço. uma única espécie de amor cresce entre o sono e a vigília. Janete sabe. sentiu antes. antes da insônia do tempo. antes do corpo à margem do tráfego. antes de aprender a soletrar p-r-i-v-a-d-o.

janete sonha vez em quando com a barriga cheia, redonda, chutes na costela, falta de ar. o canto de nanã para o cordeiro. kitnet. cama de solteira. dois corações abraçados rente à parede. no dia 23 de agosto, janete recebeu um bilhete: — mãe, não se preocupe com as roupinhas. estava lá, no chão da Praça da Alegria, escrito numa poça vermelha. só janete leu. toda noite, janete deita com cuidado para não encostar na lembrança de alvenaria. tem medo de levar um choque. tem medo.







PLANOS PARA O ÁLBUM DE FAMÍLIA



descansar a cervical entortada pelos sustos furiosos do progresso 

o sol escapulindo da boca de poetas, vereda

saber das crianças que brincam na escola e aprendem 

sobre a loucura de descartes ao ver joaninhas 

escorregando pelas perpendiculares da Royal Henry-Le-Grand 

durante o verão.


isso tem tudo a ver com a metáfora:

somos apenas um grão de areia na praia do mangue seco. 

sim! porque aquela luz não desaparece.







NO CÁLICE DE VAN GOGH NÃO TINHA VINHO



ante o sono 

a dúvida do sonho não será real.


— em nome do amarelo

certas flores inventam um lugar

fora do cálculo da primavera

uma força de troca

capaz de mover os dias


nada prescinde da luz:

as pedras contornadas pelo sol

as flores que ficam.







COLÁGENO



seres humanos voam

cantam, migram, fazem ninhos 

sem pena de qualquer natureza


a composição de nossas asas

possui familiaridade 

com aquele rodopio único 

que provoca o ar e rompe 

a pele fina do silêncio


vibram insustentáveis

então dançamos

e no ato do estranhamento 

— corpo rígido e grave —

nos rebelamos, beija-flor que somos

parados diante do espanto

exaustos da velhice do mundo.







ESPELHO 



os homens e o tempo

cavaram uma vala no meio da rua 

meio metro depois do prédio

da associação de pescadores


não há prédios como aquele na cidade

não há prédios 

na cidade de alvenaria e tábuas

montadas desordenadamente

sobre os galhos retorcidos do mangue


a fachada espelhada reflete algo mais 

que a burocracia estranha 

entre os peixes e a fome

arrebenta com a natureza

antes do amanhecer

e ainda depois da morte


lâminas de vidro 

sobre uma cobertura metálica

armadilhas dispostas verticalmente

uma a uma

para a captura do disfarce

— essa paisagem de homens

que caminham apressados

que não hesitam diante da vala

e sequer percebem 

que o prédio foi construído

de costas para o mar.







DE UNS TEMPOS PRA CÁ, ME INFORMO 

ATÉ DO CLIMA DAÍ



ela esboçou um sorriso de cumplicidade 

e aproveitou a deixa para mencionar a caixa azul:

um céu pintado à mão

para cartas que flutuam

livres 

do arbítrio da terra

e do mau tempo.







ESTÉTICA DO PRAZER



no encontro com o rio

impossível de atravessar

pôr um dos pés na correnteza

a experiência, beira de afogamento:

a possibilidade

o susto

a suspensão do ar

a queda, melhor dizendo.


bonito é quando o resto do corpo se nega a morrer.

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Adriana Gama de Araújo [São Luís/MA]. Poeta, editora e historiadora. Mestre em História pela UFRN. Professora da Rede Pública Estadual e Municipal. Vencedora, em 2017, do III Festival Poeme-se de Poesia Falada. Publicou, em 2018, pela Editora Penalux, seu primeiro livro de poesia, Mural de Nuvens para Dias de Chuva. Publicou, em 2019, seu mais recente livro de poemas, TRaNSiTo, pela Olho D'água Edições. Participou da antologia Babaçu Lâmina — 39 poemas (org. Carvalho Junior, 2019). Tem poemas publicados na Variações — Revista de Literatura Contemporânea, Revista Revestrés, Mallarmargens — Revista de poesia e arte contemporânea e Revista Caliban, todas em formato digital.


Mais Adriana Gama de Araújo na Germina

> Poesia