[Captura de tela do filme "Razão e sensibilidade",
baseado no romance de Jane Austen, 1995]


 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Parece modernagem, mas a técnica de esquiva — ou seria estratégia? — tão badalada na era virtual, a ponto de a palavra que a nomeia ter sido eleita uma das "palavras do ano" de 2015 pelo dicionário inglês Collins, pode ser encontrada no primeiro romance de Jane Austen, o clássico Razão e sensibilidade, publicado em 1811. A técnica, não o termo, claro. Refiro-me a ghosting, derivada de ghost, que significa fantasma.

Na belíssima história da escritora inglesa, as irmãs Elinor e Marianne Dashwood enfrentam a perda de um pretendente que some do nada da noite para o dia, derretendo-se como sorvete, virando fantasma sem dar nenhuma explicação ou justificativa. Compelida a viver o luto de um namorado vivo, a jovem Marianne, de temperamento apaixonado e romântico, fica consternada, sendo consolada pela mãe e pela irmã mais velha. Em romances de épocas anteriores deve haver outros registros, o que nos leva à hipótese de que o ghosting é uma prática antiga.

Na era da virtualidade, contudo, ao que parece sua utilização tem se tornado cada vez mais banal, o que representa um perigo, do ponto de vista da saúde mental das vítimas e, em menor escala, de quem pratica o ghosting. Pesquisadores alertam para o fato de que, especialmente nos contatos virtuais através das redes e sites de namoro, grande parte dos jovens veem a prática como habitual, o que resulta na naturalização da desvalorização de seus sentimentos e consequentemente dos sentimentos dos demais. Trata-se da maneira mais cruel, tóxica, desumana e indigna de abandono amoroso. O outro é descartado como lixo, como objeto, sendo completamente coisificado, pois não é considerado merecedor de receber um aviso, ouvir uma justificativa, ser ouvido.

Na opinião de especialistas, não é difícil prever as consequências dessa atitude na vida das vítimas: inicialmente tentam seguir o caminho da negação, angustiadas diante da possibilidade de ter ocorrido alguma catástrofe na vida do abandonador. Com o passar dos dias, outras emoções vão se instalando, conforme a personalidade de quem sofreu o ghosting: tristeza, raiva, revolta, apatia, ódio, ansiedade, impotência, humilhação, desamparo, sensação de rejeição e menos valia, passando por uma via-sacra que inclui sentimento de culpa, pois, por não entenderem a atitude do outro, tentam encontrar em si mesmas a causa, a origem do malfadado desfecho que não "fecha", do desenlace que não "desenlaça" adequadamente. Esses efeitos negativos podem afetar suas relações futuras, dependendo do grau de autoconfiança, da sensibilidade, do potencial amoroso e da capacidade de resiliência de cada um. 

Em casos extremos, as vítimas podem apresentar quadros de depressão reativa ou de doenças físicas, após o episódio traumático. Há ainda exemplos mais complexos, quando os que sofrem o ghosting fazem parte do seleto grupo atualmente denominado de "empatas", nos círculos voltados para estudos e práticas espirituais, embora a palavra ainda não esteja dicionarizada. Empatas geralmente são pessoas que desenvolveram — não se sabe bem por que motivo — um grau de empatia muito acima da média, com dificuldade de separar suas emoções das emoções alheias, portanto mais vulneráveis que as pessoas "comuns." São mais "porosos", mais sensíveis.

Alguns profissionais da área da saúde mental apontam as possíveis causas que levariam a essa prática nefasta. Uma delas é justamente a falta de empatia, definida como a incapacidade de estabelecer conexões e de "usar a roupa que o outro está usando", como na letra de Pérola Negra, a linda canção de Luiz Melodia. Em outros casos, o que leva alguém a deixar o parceiro no vácuo é o medo do confronto, a impossibilidade de lidar com as emoções negativas do outro e de encarar suas próprias emoções. Há quem pratique o ghosting por não querer magoar, sem levar em conta que sua atitude magoará o outro em dobro. Nesses casos, é pouco provável que não tenha de lidar posteriormente com certa dose de remorso e de desgosto por ter terminado uma relação dessa maneira. Há os que não têm nem sequer a capacidade de avaliar os prejuízos que seu gesto pode acarretar. Outro motivo apontado seria a dificuldade apresentada pelos praticantes de desenvolver relações mais sérias e duradouras, pois geralmente dão prioridade às conexões superficiais e rápidas.  De acordo com a psicóloga Renata Borja, contudo, não dá para julgar sem conhecer o caso específico.

Para mim, a palavra-chave para definir os praticantes de ghosting é a covardia: "les hace falta tener pantalón", como diriam os argentinos. Pessoas seguras de si, emocionalmente maduras e afetivamente responsáveis não praticam ghosting, pois conseguem enfrentar o sofrimento do outro e fazem o possível para amenizá-lo. É importante registrar que algumas pesquisas apontam que tanto homens como mulheres podem deixar os parceiros no ar, impossibilitando ou dificultando o encontro de um encerramento digno, já que as vítimas terão de se conformar, mesmo a contragosto, com a interrupção abrupta, muitas vezes sem a mínima ideia das razões que levaram ao término da interação amorosa.

Apesar das estatísticas, ouso formular a hipótese de que a maioria dos praticantes do ghosting pertence ao gênero masculino, provavelmente por razões culturais. As mulheres são habituadas desde pequenas a falar sobre suas emoções com maior abertura, tentando melhorar as coisas, corrigindo o que não está bem, colando o que se quebrou, por vezes tentando obsessivamente consertar "o que não tem conserto nem nunca terá, o que não tem tamanho", como escreveu Chico Buarque.

Na esteira do ghosting, surgiram práticas ainda mais bizarras: o orbiting, que vem da palavra inglesa orbit, cujo significado é orbitar. O praticante do ghosting, não satisfeito com sua atitude, depois do prolongado sumiço continua seguindo e curtindo as postagens do ex-parceiro nas redes sociais. Transforma-se em fantasma que não é genuinamente um fantasma, pois sempre arranja uma maneira sub-reptícia de mostrar sua presença. Há também o benching, que significa algo como "fazer alguém esperar sentado", ou seja, no banco de reserva. Geralmente seus praticantes mantêm concomitantemente várias pessoas esperando a vez de "entrar em campo". Eles convidam alguém para sair, por exemplo, e continuam a sair com outras pessoas. Depois convidam novamente, daí a algum tempo, caso não tenham encontrado seres mais atraentes pelo caminho. E ficam indefinidamente nesse ioiô, caso o outro não corte definitivamente o jogo.

Deve-se ressaltar que o ghosting não se restringe às relações amorosas: em tempos de pandemia, é cada vez mais praticado em relações de outra natureza, como as amigáveis. Para os que creem na reencarnação, certamente é uma prática que deve criar carmas difíceis de ser resgatados em outras vidas. Quem tem algum juízo pode avaliar o preço desse tipo de protelação que fere e humilha o outro.

 

 

 

 

 

dezembro, 2021