©m ameen
 

 

 

 
 

 

 

 

INFÂNCIA



lá pelas bandas do fim do mundo

costumávamos nos esconder

para aguardar a chuva

que sempre vinha intensa e afetuosa

acalmar a praia


naquele tempo

a cidade só amanhecia

parecia nova

embora refletisse o retrato dos avós nas paredes


naqueles dias

contemplar o inominável

era a única forma que existia

de preservar

nas últimas horas

o sonho que fomos no futuro







ANIMA



como um eremita das alturas

alimentando-se de brisa

encarnou um pássaro majestoso


de voo imprevisível

contemplado nas tardes lisérgicas

mais vagarosas


incompreendido por seu bando

costumava arrastar uma sombra morna

sobre praias abandonadas

recordando o calor

de antigas namoradas

que o oceano insiste em refletir







SEGREDO



houve um tempo na infância

em que fomos obrigados

a viver longe do mar


e passamos a crer

com o distanciamento dos anos

que o abalo do deslocamento

era apenas uma questão de ponto de vista


porque o barulho das ondas

sempre nos resgatava

em algum momento de sono ou silêncio


nos revelando

que a memória das águas

era também uma forma de beleza e alívio







LENDA



conversei com um buda

risonho

que me acompanhou

numa caminhada de séculos

encerrada nesta tarde


ele me disse somente coisas inúteis

como sempre faz

há dois mil anos


poemas

rezas

notícias

blasfêmias


ainda assim

fiquei surpreso

quando contou

que a pedra no meio do caminho

tinha mudado de lugar


[Chapada Diamantina, 2010]







QUIETUDE



quando a guerra começou

brincávamos na praia

como de costume

desde quando a cidade surgiu


na verdade

toda a calamidade durou

menos de dez segundos

tempo suficiente para queimar

o único retrato da família


ninguém do clã saiu ferido

é certo

mas ainda estamos perplexos

com a solidão que sentimos







ALGUM LUGAR NENHUM



abandonado neste cais

à espera de algum barco fantasma

lembro de você mais uma vez


naquele instante

sublinhado para sempre

diante do mar prateado


depois de tanto tempo

por mais surpreendente ou paradoxal

que pareça

ainda carrego na velha mochila

um remorso pálido


por ter perdido o embarque definitivo

que me conduziria

como um refugiado

ao continente indefinível dos teus olhos







CLIMA

uma asfixia imensa
promete atingir semanas

neste oceano
todas as miragens parecem habituais

não há mais tempo a conceder

chegou a hora de adernar o barco
sonhar que seremos salvos







DESMEMORIAMENTO



aquele navio

que passa adiante

quase cego

carcomido e vagaroso


viveu dias melhores

temporadas de glória

durante décadas


suntuoso

era o maior de sua estirpe

entre ocidente e oriente

cumprindo sempre a mesma rota

abarrotado de conhaque

pó branco e metal


dentro de pouco tempo

sairá de cena

entrando em definitivo colapso

sem âncora nem memória


algum estaleiro sombrio o abrigará

no esquecimento

não existindo

qualquer outro destino à espera







SÍSIFO



um vagabundo

de alma improvável

continua a recontar navios no crepúsculo

diária e mansamente


não esperem mais do que isso

há tempos permanece ali

imóvel

fiscalizando o fluxo dos escombros do mar


ofício imperceptível do qual provavelmente

tanto se orgulha


trabalho árduo

executado com a primazia dos grandes mestres

como uma eterna tentativa

de dar seguimento à vida







SOLITUDE



às três da tarde

a cidade secava de abandono

sofria

como uma fotografia

prestes a ser rasgada


não havia qualquer sombra humana

fora das ruínas


do alto da colina

era possível assistir

ao vento lançar

um mormaço denso sobre a baía


seguia assim

por horas

até que o sopro da noite

vinha estender

um manto de estrelas

nas entrelinhas do silêncio

revelando

o imenso sentido da calmaria







PONTA DO FAROL



navios passavam pelo horizonte

como passageiros por um terminal


uma hora parecia haver trinta

noutra contavam-se vinte e sete


de repente

por um descuido nosso

restavam dois ou três


difícil mesmo era intuir

qual transportava a saudade







FÁBULA



quando despertou

foi morar numa pequena localidade ao norte


pouco depois

do sexto conflito regional


havia algumas moradas

além de pedregulhos

como reminiscências

de um futuro inanimado


mesmo com o coração exilado

desfrutou da companhia de três amigos


um percevejo

uma libélula

e um porco-espinho


com os quais cultivou

as últimas tentativas de estima


foi quando a pele

voltou a sentir a imagem das marés


como a janela

que restara na memória

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Eduardo Júlio (São Luís/MA, 1971) é poeta e jornalista. O seu primeiro livro de poemas, Alguma trilha além (prêmio da Secretaria de Cultura do Maranhão), foi lançado em 2005. O mais recente, O mar que restou nos olhos (7Letras), saiu no final de 2020. Em 2022, pretende publicar O sopro do lugar junto ao tempo.


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