©arek socha

 
 
 
 
 
 
 
 

Pequenos círculos amarelos, vermelhos, rosados, faíscam na gaveta e te acenam quando começa a haver uma incapacidade alarmante de tolerar o estupro corriqueiro. Relax, baby: elas estão sempre à mão, as pepitas de sono, desligamento, distância. A qualquer dor de crescimento, é só engolir uma delas.

Esses Édens ou Limbos  são infinitamente usados nos dias de hoje, e só uns poucos são acessíveis ao bolso dos pobres diabos, que também sofrem da miséria psíquica que abate classe média, ricos, milionários, dez entre dez estrelas de cinema, artistas, políticos, donas de casa, etc. Tem que se recorrer a eles à falta de amigos, de amor e de todo o repertório de maravilhas que parece existirem apenas nas telenovelas, nos best-sellers, na vida dos esbeltos e bem alimentados ou nalguma paragem remota, Nirvana fechado, inatingível por meios comuns. Assim como a masturbação é sucedâneo do encontro sexual, os calmantes pretendem substituir a serenidade natural, que só deve pertencer a místicos tibetanos, que nunca viveram quatro dias no centro de uma metrópole desviando dos corpos de moradores de rua alagados em mijo ou algo assim.

E vem a escravidão macia, vêm as noites instáveis, cada vez mais instáveis, as horas do Grande Medo, as garras obscuras de um pesadelo mal amortecido pela vigília, a ameaça das ruas, a esquiva ameaça dos olhares, e tateia-se os bolsos para obter-se a confirmação de que a defesa está ali, ali o segredo, a denúncia e a negação do martírio. Um comprimido é engolido às pressas num banheiro público, furtivo e necessário como um sacramento profano destinado a assegurar a continuidade da máquina exausta.


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Ficou difícil atravessar qualquer dia útil sem que se prepare um miúdo arsenal de trégua para a guerra das concessões, dos convites para casamentos e velórios, banquetes, reuniões de partido, missas, cartões de ponto; como trancar os ouvidos à ladainha dos estropiados, às sereias infames das vitrines? Como aguentar sem revide o tapa do patrão e a simples dor de ser, dor ancestral que se estende no asfalto, urrando em surdina, pedindo uma solução impensável? A travessia de cada dia é uma odisseia para a qual, ao contrário de Ulisses, não temos vigor espiritual ou heroísmo suficiente.

Nossa loucura é inocente. Os calmantes se sofisticam, ficam cada vez mais caros e eficazes, mas são apenas sintomas de uma intranquilidade para a qual não parece haver remédio algum. Todos somos culpados e ninguém pode ser acusado de nada. Perdemos de vista o senso de compromisso moral, que produzia a angústia e a culpa. Só nos perturbamos com a redução da eficácia, como máquinas que contivessem peças desajustadas exigindo reparo ou troca. E o calmante dá, por algumas horas, a ilusão de que tudo vai bem, de que podemos continuar em paz com nossa insensibilidade rotineira.

Há muita, muita dor no mundo. Não é dor que se vença pela anestesia temporária, que se curve a nossos laboratórios, que se renda às nossas especulações tão raivosas quanto intermináveis, que se cure através do ingresso numa nova seita, no cinema, na discoteca, no motel, na academia de musculação. Nada é superior a nada num mundo em que o humanismo virou um recurso desacreditado de camelôs da alma e o que se promove é a exploração dos apetites básicos com quantidade cada vez menor de justificativas. Um mundo hierarquizado por sensações — a máxima é a do poder que pode vir do sucesso material. Um sucesso em geral conquistado com sucessivas derrubadas de corpos dos mais escrupulosos pelos caminhos afora.

Tarde demais para discursos. Tudo é cinismo, a onda cúpida de Horror engolfa toda forma de vida e pensamento e uma resistência consciente a ela é um sofrimento que poucos querem encarar. O que anda pelas ruas é contágio, sujeição, e os que não foram contagiados nem se sujeitaram têm o ar perdido dos que mal sabem como começar a agir.

Perdemos alguma coisa. E ela era fundamental.

 

 

dezembro, 2021