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"Que importância tem escrever e publicar outro livro?", pergunta ele a si mesmo em seu canto silencioso, diante de uma estante onde assomam uma pequena escultura de um prêmio literário, um buquê de flores do campo, um incensório, um celular, um relógio de pulso posto de lado e bibelôs antigos. Quanto aos livros, desorganizados, nem sente vontade de ficar olhando-os e lembrar as circunstâncias em que foram escritos e publicados. Sobe-lhe um nojo de neles ter se exposto tanto, para nada. As críticas positivas que possam ter tido também lhe parecem equivocadas, pois como puderam esses sujeitos gostar de coisas escritas com tanto sofrimento por trás? "A gente dói e o mundo se lixa", pensa, "É só mais um livro, elogia-se o talento e a imaginação do autor, sua miséria foi apenas matéria-prima para fruições atentas ou distraídas, estudos acadêmicos, perguntas inteligentes, elogios, uma tarde de autógrafos com algumas presenças brilhantes, risos, taças de vinho. Tudo acabou num silêncio que torna esses volumes enfileirados, fetichizados e venerados, tão relevantes quanto os bibelôs e as coisas contingentes à sua frente.

Mas também, que diabos de pretensão era a sua? Salvar-se? Salvar o mundo? Escrever algo a partir de que nada mais existisse fora do que escolheu, sentenciou, construiu? A obra divina, o Livro de Mallarmé, do qual nada de poético e possível ficaria excluído? O transformador total da vida? Ora, a vida mudada que Rimbaud tentou foi longe da escrita. Todo escritor pode sentir um dia que, apesar de todo o seu talento e seus sucessos, nada de realmente significativo foi mudado no mundo. O que se produziu foram dejetos, quinquilharias, coisas a mais num mundo de coisas que o Tempo varrerá, indiferente — esta é a única perspectiva real".

***

A pretensão que há nisso, a eterna vaidade insaciada e ansiosa de reconhecimentos que, ao chegarem, nunca satisfazem! Lembrando-se da tribo, de um último coquetel reluzente em presenças (e ausências não previstas), pensa que é como rever um monte de crianças alegres, enfáticas em elogiar sem saber bem o que elogiam, álacres e prolixas em seus desejos de um sucesso que é só um desejo e, que se ocorresse realmente, provocaria mais dissensões e invejas do que qualquer satisfação. A vaidade tola de pôr no mundo mais um testemunho subjetivo de coisas que só ao autor importam não será sequer lembrada: festa não precisa de motivo pra existir, a fugacidade é tudo que importa, o livro é festa em si, pouco importa o que ele traga, e é melhor que não seja assim tão digno de ser lido e respeitado, porque a maioria tem uma tendência a não passar da capa, da contracapa e das orelhas. Essas crianças são sempre adeptas do momento, não contam com o pó e a irrisão a que mais um livro se destina nem sabem do inferno por trás daquelas frases bem torneadas. Se de fato um monumento artístico de grande importância foi erguido, a irrelevância de tudo que o cerca torna difícil acreditar que isso ainda seja possível. Num mundo em que tudo é volátil, chega a ser ofensivo cogitar de perenidades. Perene é a insatisfação geral. Perene é a pressão para que um novo livro seja publicado sem que o anterior sequer tenha sido folheado.

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Ele se afasta lentamente para tomar nova xícara de café, olhar para a tela em branco do computador. Seu nada, o nada das coisas, a pompa dos volumes com suas lombadas em que às vezes afloram letras douradas em relevo, ficam de lado, não quer olhar para elas. Quer olhar para a tela, para o teclado, e começa a digitar mais um texto.

Quem foi que disse que sua lucidez iria parar tudo e tirar-lhe o impulso reconhecidamente inútil de continuar?

 

 

março, 2021