Imagens da velhice que vejo trazem em geral um homem caminhando cabisbaixo, usando uma boina, às vezes com uma bengala, às vezes acompanhado por um cão. Quase sempre a impressão é de que esse cabisbaixo é um ser humilhado: as roupas estão lhe sobrando, a prostração está em luta aberta com um resto de virilidade ou simples dignidade que ainda lhe dá alguma disposição para andar.
O Tempo fez com que baixasse a cabeça, mas é uma ocasião bem propícia para, com isso, olhar para dentro, olhar para a terra, que é a verdade que o espera, a verdade que um dia o tragará. Cada um desses passos que ele dá, trôpegos, mas procurando alguma forma de vigor, o leva para mais e mais fundo dessa terra, seja ela acolhedora ou não. Que pode ele contra esse destino?
O certo é que cada passagem de pessoa por este planeta é única. E talvez seja mesmo impossível que um ser tão ímpar em suas qualidades (e também em suas misérias) não tenha a garantia de alguma eternidade. Seu corpo sempre quis isso, eternidade para os prazeres que um dia sentiu e de que hoje guarda lembranças impotentes. No entanto, como só lhe restou essa vida mental na qual a memória importa mais que todo resto, talvez recordar tenha uma qualidade de prazer não parecida a nenhuma outra em sua intensidade e seja mais prêmio que condenação. Hoje em dia são esses restos de uma identidade muito singular que o definem e a verdadeira tragédia é quando se dissolvem ainda em vida, quando não lhe é mais possível sentir orgulho de sua singularidade, pois que até isso a vida lhe consumiu e tragou.
Enquanto essa tragédia final não vem, ele está muito menos neste mundo de agoras implacáveis e olhares de compaixão (quando alguém ainda lhe lança um olhar) do que nas múltiplas ruas enevoadas de uma cidade, de um outro país, de um tempo só por ele vivido, de coisas só por ele vistas. Pode dar de ombros para o mundo real, para a calçada de transeuntes impessoais em que avança com seus passos de artrítico, bengala, cão, talvez um que outro puxar a boina para um cumprimento necessário.
Não é bem de um derrotado que estamos falando. Ele inclusive se recusa a fazer parte do extenso banco de aposentados da praça porque lhe parece que as conversas, sempre girando em torno de bravatas patéticas, ereções que não se firmam, remédios que se esquece de tomar, safenas mamárias, hemorroidas, hipertensão arterial, rins em mau funcionamento, urina presa, circulações que andam truncadas, mulheres que convém esquecer em casa, triunfos de um passado que não se está interessado em confirmar, são conversas que não quer nem precisa ouvir. Sua recusa já lhe valeu muitas inimizades silenciosas, mas, a essa altura, que lhe importa manter a reputação que seja? Nunca foi senão pouco sociável e egoísta e, na vulnerabilidade desse fim de vida, reconhecer-se um caso peculiar de egoísmo e alheamento não lhe dói nada.
O que de fato o incomoda é não saber como morrerá, se isso não será indizivelmente atroz como ameaça ser, contrariando as filosofias de conveniência psicológica e covardia que asseguram uma "passagem serena" e os incansáveis espíritas iludidos com reencontrar no outro mundo "entes queridos", como se a vida inteira famílias não fossem ninhos de ódio e rejeição, incompatibilidades reprimidas, desejos desesperados de fuga. Reencontrá-los para recomeçar queixas e ódios no plano celestial? Como é que não conseguem ver o ridículo disso?
Nada de Aléns, não quer reencontrar familiar algum, os "seres de luz" lhe parecem de uma pieguice insuportável, a ideia de uma total inconsciência nos fundos da escuridão é a que mais lhe agrada. A certeza de que o mundo, a Natureza, pode perfeitamente dispensá-lo, seguindo sua rotina depois de que ele se foi, é-lhe muito mais consoladora. Os pardais seguirão cantando (e também defecando) sobre seu túmulo, bem, e daí? "Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências", um poeta uma vez escreveu.
No campo do Talvez sepulturas e mais sepulturas se estendem. No entanto, talvez tudo se resuma naquilo que um dia Jorge L. Borges disse: "Seremos pó, mas pó apaixonado".
De volta para as estrelas das quais somos pó disperso, brilhante? Nunca se sabe. E no campo dos Nuncas ele é só um ponto de interrogação desbotado que persiste em ir caminhando pelas ruas, porque não lhe resta outra coisa senão o prazer de ainda poder andar um pouco, sem objetivo nenhum.