©mircea
 

 

 

 
 

 

 

 

O OLHAR MADURO DA ONÇA



Não se escreve um poema de amor impunemente.


No desvão da noite uma onça perpetua a sombra de fogo

sobre teu caminhar espaçado.

Há uma súplica com os devidos ais prudentes,

a onça sabe onde derrama seus passos.

Crava os dentes nesta carne que tem cheiro de batismo,

o sangue suado de caça.

Que rara luz expressa teu corpo.

A onça é aos poucos domesticável.


Não se escreve um poema de amor inutilmente.







CANTO INTERMITENTE



Celebro uma ferocidade plena

Furo com os dedos teu peito nu

Parto que nem vento

E saio da boca do leão para a do lobo

Janeiro me trai feito sol

Tudo que podia brotar

não é flor







CONJUGAÇÃO



Um quadro de Van Gogh

ou um verso de Cecília

não tiram de mim a imperfeição.

Sei quando a noite é insulto

e que não terei à minha porta as quatro estações.

Nem os deuses, nem as salamandras com seus poderes

hão de me livrar do cansaço, dos punhais,

desse céu escuro, atormentado.


Aquilo que mais sei sempre me atravessa,

não se eterniza.

Ainda que eu saiba a cor dos meus desejos

continuo bebendo desta taça funda,

mas não darei nome a tanta sede.







MAGMA



Como se tudo em mim fosse mais

sou eu que me lanço as pedras.

Deixo a faca no peito sem morrer.

Há um fogo no corpo se fechando em ciclo,

esse poema começando do fim.

Inferno? Partilha?

Nada me restitui a inocência

ainda que o sol no café da manhã

seja mais um ofício de querer a lição.


O hábito de sofrer diverte.







CENAS DO ATERRO DO FLAMENGO



João é mudo. 

Tereza surda.

João está sempre gesticulando

como se tivesse aves repentinas nas mãos. 

Tereza lembra paisagem: atenta, alheia.

Uma vez os vi abraçados,

mas logo se tornaram rosas vermelhas.

João batia no peito e muitas penas voavam.


Teresa tem a força do mar.







FEROCIDADE SÚBITA



Escancarados passos dou em nome da paixão.

Sem nenhum tato o fogo avança

me devora cego,

depois me acorda estou só e degolada.

Entre pernas, dedos, segredos,

o espaço desgrenhado do quarto.

Não dá para confundir ais e bem-te-vis

nem a braguilha aberta da calça.


Com o beijo, com a faca,

quase a um palmo da paixão,

te corto às cegas, sem memória.

O que respinga do quarto não é sangue, 

é a minha boca molhada, acesa e sã.







FELICIDADE



Toma, homem,

este é meu corpo.

Barco a vela

como qualquer embarcação.

Nas marés da sorte,

a maturidade de ir dominando o fogo.

Os enganos não enganam mais.

Gosto deste ai não lírico,

do meu jeito cigano de nunca mais acreditar.


Toma, homem,

estas batidas mínimas.

O que chamo amor está em Bangcoc, Beirute.

E visto a roupa porque espero o galope lento, lento das palavras.


A poesia pode tudo. 







ESTA MÚSICA SOB O OLHAR DO ANJO



Ele nunca deixou de tocar para mim


Suas mãos duas estrelas baixas

E quando entra no meu quarto

abre o piano com a mesma coragem cega

de um Borges

Jamais esteve surdo para o silêncio que vem das palavras


Beethoven só não dorme comigo todos os dias

porque não quer







OPOSTOS



A cada dia trabalho tua terra e não vês.

Ainda assim, meu corpo cristaliza o gesto de plantar,

enquanto és visto correndo no pasto.

Nasci para ter alimento e ser apaziguada.

Sempre dizes que os ventos te guardam.


É entre paredes, lamentos,

que a água que resvala em mim não te toca.


Temos em comum mais naufrágios do que mar.







SOLIDÃO



O desejo que tenho do outro

não perturba os gestos solitários.

Não é o vento que leva meus sonhos,

nem o mar que devolve os escombros.

Tudo em mim é solidário e agoniza.

Acontece que o amor termina.







CAMINHO DO PESCADOR



Que imagens guardar para não sofrer?

Que poemas escrevo,

se não sou como o "galo tecendo manhãs"?

Que amor?

Onde deságuo,

tu não escorres nunca.

Janto minha alma amarga

todo resto continua na fome.

Ah, se Deus não vê

como posso eu enxergar tudo?







UMA CONSTRUÇÃO



Não é o engenheiro,

mas o encarregado da construção que diz:

se você passar por dentro do canteiro da obra,

cimento vira flor.

Eu passo, 

feliz por viver entre os homens.

Caminho sem idade, 

a pele refletindo vermelho carmim,

os quadris, remexendo, carregam baldes de água.


A autoestima tem dezessete andares.

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Lila Maia é maranhense e vive no Rio de Janeiro. Poeta, pedagoga. Escreveu os livros de poemas As maçãs de antes (vencedor do Prêmio Paraná de Literatura/2012 - Prêmio Helena Kolody de poesia e semifinalista do Prêmio Telecom Portugal de Literatura/2013, hoje Prêmio Oceanos); Céu despido (2004, vencedor do II Prêmio Literário Livraria Scortecci/SP); A idade das águas (1997). Em 2013 ganhou o Prêmio Infantil Coleção Vertentes, da Universidade Federal de Goiás com o livro Caixa de guardar amor. Em 2015 ganhou o Prêmio Juvenil da Universidade Federal do Espírito Santo com o livro de poemas O coração range sob as estrelas. Participou das antologias poéticas Amar verbo atemporal (Rocco, 2012), Sete vozes (Editora da Palavra, 2004) e Próximas palavras (Editora da UERJ, 2003, organizada e com apresentação do poeta Ferreira Gullar). Tem poemas publicados na Revista Poesia Sempre da Biblioteca Nacional.


Mais Lila Maia na Germina

> Poesia 2