Tudo isto faz do poeta, nos nossos dias, uma
espécie de cão abandonado no meio da auto-estrada.
Fernando R. de La Flor, Biblioclasmo.
0. Poema, fata morgana, ação mínima concentrada na reflexão máxima. Padrões de onda em estrela, em crescente, em triângulo escaleno. Arte de peixinho de prata do Tempo a escavar fiadas de hipogeus e wormholes nas folhas brancas dos livros como sangue raiado no muro custódio do fuzilado. O olhar-leitor perfura o corpo da folha como a bala atravessa o peito do condenado atraída pelas fendas escuras da parede em ruína. Entre os tijolos de barro vermelho: recados, argamassa, orações, palavras-passe, cones de papel de gelados, receitas de dobrada, esqueletos de lagarto, tampinhas de plástico, folhinhas de bloco rasgadas, cascas de nozes e de amendoins. Diante, o brilho poliédrico da lanterna do Eremita e do Tres de Mayo.
1. Faremos do Poema a lamentação. O holocausto dos machos e das fêmeas assassinas, a decapitação dos santos, as rodas extintas de cada transladação. Os equívocos da respiração abafada junto ao relógio de sol. A esquiva compleição de um monumento escorado num canto das estrelas. A Morte sacudindo com todas as forças os vestígios áureos dos últimos relâmpagos.
2. A indústria da poesia e a descarbonização. Sobeja a vastidão dos armazéns sonoros sobre os depósitos vazios de carburante, o retinir dos operários nos coros dos eventos sociais, as torres esguias como fósforos acesos. Sociedade de nomes hertzianos, de palmas de ouro, de louros e bolachas, de sementes de linhaça e de girassol cuspidas para os regos entupidos de posfácios. Indústria não poluente, de risos molares corporativamente brancos. Sociedade dos poetas vivos-mortos nos diretos de Última Hora, reciclados no dia seguinte no contentor azul.
3. Anuário poético: A. D. Anno Domini 2021, Anno Danti. Setembro. O Paraíso-alpendre do sagrado, lugar de tumulação. Paradiso, casa noturna e livraria em Maastricht. Bailado e silêncio. O Poema mirífico, Caríbdis para nova galáxia. Dante agita o pano vermelho e dá o sinal de partida à regata do Estreito.
4. O Inferno de Dante como casa de espetáculos. A Morte dança entre os corpos, a elipse do baile alarga-se ao peso dos rochedos gelados e dos sacos de vísceras. Frita-se o fígado, os rins, pedaços de coração envolvidos em algodão e lã merina, a medula é gratinada com rosas de Ispahan desidratadas em sal. O Poema serve a maçã previamente aquecida no microondas da raiva. Vergílio cansa-se e lava os pulsos e as fontes nos tanques estígios. Cheirava então a coentros, a flores de laranjeira, a fumo de cepas e a cera amarela de soalho, a bananas pisadas, negras como lábios de cães.
5. O porteiro não é Cérbero, é Príamo. O Rei de Ílion vigia dos muros as naves aqueias e as fogueiras de vinhático nas praias. Ele chora os uivos das três cabeças de Molosso, herdeiro de Heleno, outros dos filho do rei das belas muralhas. Ele chora os restos do cadáver empoeirado na tenda de Aquiles. Ele rasga as vestes como o Poema rebenta o estômago dos sapos. Ele prepara a pira como o Poema prepara os leitos da refeição fúnebre, como sacode os tapetes e enche os copos com a claridade da Lua.
6. Certo, a Poesia é ato de humildade e é ato de humilhação. Tempo em autopsicografia, a Poesia sobreviverá na lápide do Poeta muito além da sua juventude, muito além do intervalo esquecido da Morte, muito além dos aplausos catódicos nas salas de vestir espelhadas. O Poeta suportou calado o inferno, enfrentou a privação de mãos abertas nas algibeiras, aguardou os excessos do dia com o telemóvel em modo silencioso. O Poeta é Ulisses a fingir as lágrimas por trás da porta, a desenhar labirintos de urina velha nos novelos da esposa honrada. Maldito o caldeirão das imagens ruidosas que lhe comprimem o cérebro até perder os restos de prata ainda por escavar nas órbitas. Maldito o Poeta que não seja osso.
7. É necessário escolher uma boa epígrafe, um bom acompanhante, um bom curador, um bom leitor, um bom apresentador, um bom editor, uma boa livraria, uma boa salada, um bom bar de tapas. A bondade poética não leva o pão à casa da liberdade poética, vizinha do casebre das traseiras em isolamento profilático.
8. Carlos de Oliveira em O Aprendiz de Feiticeiro: "O livro, qualquer livro é uma proposta feita à sensibilidade, à inteligência do leitor; são elas que em última análise o escrevem". Carlos de Oliveira escreveu-o em 1969, ano da missão Apollo 12. A proposta do livro é pouco complacente com a sensibilidade e a inteligência do leitor-cibernauta das experiências do pitoresco nestes tempos gourmet de espumas e receituários poéticos. Os poemas vêm-se fazendo como acompanhamento na travessa do arroz de tomate biológico. Não o arroz, feijão-roxinho, molho de batatinhas da cozinha exata da mãe de Adélia Prado: este é um arroz sem lágrimas cortadas pela cebola, cujas sobras frias se aprontam sem demora para o congelador em caixas de plástico. As rodelas de limão, outro acompanhamento, seguem para o lixo orgânico, inútil referência erótica purgada da escrita. Lava-se a caixa hermética em água corrente, põe-se a escorrer na banca, regressará ao seu ofício enquanto o vidro não o vier superar como opção ecológica mais responsável. Faz-se da poesia uma aventura gastronómica consciente mesmo quando a fossa é o destino da grande bouffe dos chefs das artes literatas. Poderá ainda qualquer livro, qualquer livro de poesia, ser uma proposta feita à sensibilidade, à inteligência do leitor? No vapor ecológico das caldeiras infernais, o Diabo coze grelos de produção sustentável. Durante a Baixa Idade Média, lemos na História da Vida Privada em Portugal, os tratados de educação recomendavam às mães a catequese quotidiana através do exemplo: "os legumes a ferver na panela, por exemplo, poderiam fornecer a ocasião para lhes falar do inferno". Nas gravuras de Doré, as coroas de louro de Dante e de Vergílio agitam-se com o suão e perfumam as carnes magras de Ciaco.
9. Dante tem dois túmulos em Ravena, uma capela estreita e um monte de terra. Sobre Ravena escreveu Jorge de Sena um poema onde também fala sobre Byron. Do poeta português, no entanto, citarei "Purgatório": "As dores do mundo não as sofre o mundo./ Embora os matem, torturem, entristeçam,/ embora lhes violem quem mais querido,/ embora percam tudo o que nem tinham,/ os homens sofrem porque sofrer dói menos". Sena escreveu estes versos em Tancos, a 24 de setembro de 1943, durante a invasão aliada de Itália e quase um mês antes do bombardeamento da cidade alemã de Kassel, onde as explosões e o incêndio que durou sete dias provocaram cerca de 10.000 mortos. Da capela neoclássica com uma pequena cúpula, os desastres da guerra levaram prudentemente os ossos e as folhas secas dos louros de Dante. Em 1943, ainda não tinham sido escondidos no jardim gradeado ao lado, sob uma cúpula etrusca, na área atualmente conhecida por "zona dantesca". Pede-se silêncio ao viandante. O sofrimento sem dores é o lume da Lua. A dor desfaz as paredes do mausoléu nos torrões cobertos de vegetação que observamos nesse horto funerário fechado. Dante morreu exilado e o mundo oferece ternamente ao homem a estesia do sofrimento. Lava acabada de sair da cúpula de enxofre, o sofrimento é o casulo do homem, a esperança de o subtrair à insensível exposição futura no Gabinete das Curiosidades. A dor é a Cúpula Atómica, museu feito de ruínas e de sombras radioativas. Recobro o texto de Carlos de Oliveira: "Quanto mais depurada for a proposta (dentro de certos limites, claro está), maior a sua margem de silêncio, maior a sua inesperada carga explosiva. A proposta, a pequena bomba de relógio, é entregue ao leitor. Se a explosão se der ouve-se melhor no silêncio". A ordem poética: a procissão dupla dos mártires na nave silenciosa de Santo Apolinário.
10. É possível que alguém já tenha afirmado que a Poesia morreu no dia 10 de novembro de 1891, em Marselha, numa cama de hospital. Tudo o que se seguiu foram línguas de fogo a derramar-se das alturas em compartimentos mais ou menos fechados às inquirições do mundo. A Poesia não se faz sem Tragédia assim como a sementeira não se faz sem o enterro ritual do porvir. Quase um século e meio depois e a colheita ainda se faz tardiamente entre joio e giesta. As hastes crescem demasiado depressa e algumas estagnam nos ares a aguentar firmes a troça dos pássaros. Outras tombam, apodrecem, frutificam em pomos saborosos de pequeno calibre. Outras tomam a rigidez dos esteios que as sustentavam. Na edição portuguesa bilingue da Obra Completa de Rimbaud, a última carta do poeta é dirigida ao doutor Baudier pedindo que lhe envie de imediato a perna artificial. A carta data de 3 de setembro de 1891. Rimbaud estava a morrer de cancro e uma carta de Isabelle de 22 de setembro insistia que o pavor do irmão se resumia à expetativa de não conseguir ganhar a vida no futuro. Agarrava-se à perna articulada como o náufrago ao pedaço de tábua providencialmente colocado ao seu alcance. Em que relicário de feição romana se guardarão os ossos cancerosos de Rimbaud? Que Santa Capela, arco gótico ou cúpula barroca protege pedacinhos da perna de madeira? Amputado para ganhar a vida é imagem que a sua poesia infernal não colheu. Terá Rimbaud compreendido, nesses dias terminais, que Orfeu ocupava já a sua carne e disputava às Ménades cada porção do seu corpo? Penso aqui no Segundo Homem de Daniel Faria, a quem amputaram o braço direito e como então aprendeu a desenhar com a mão esquerda "polvos e homens com muitos braços, como a Medusa cheia de cabeças". A Morte e a Vida imaginam sempre muitas saídas: os corais feitos do sangue da Medusa, a cabeça de Orfeu boiando num rio da Trácia, os riscos furiosos a lápis de cor rompendo o final da redação infantil com desenhos de vacas, vinhas, foices, testículos e maçãs. L'étendard sanglant est levé/ L'étendard sanglant est levé/ Entendez vous dans les campagnes/ Mugir ces féroces soldats/ Ils viennent jusque dans vos bras/Egorger nos fils, nos compagnes.
11. É outono em Portugal e os jardins da cidade raramente estão cheios de folhas secas. Relvas verdes, bem cortadas, brilhantes, higienizadas, com placas polidas a proibir os dejetos dos cães. As folhas secas são poemas velhos empurrados para sacos pretos ou azuis que lembram mortalhas de plástico. Já ninguém deseja as folhas a resistir às valetas como presos arremessando-se contra as grades a implorar água. Já ninguém deseja do outono as castanhas assadas ou os fumos tóxicos dos queimadores, nem mesmo nas Feiras dos Santos da premiação literária. A castanha mais jovem, o vinho mais novo, a maior abóbora-menina. Com 26 anos, Rimbaud decidiu abandonar os ardores de Áden e ir viver para Harar, na Abissínia. Numa carta dirigida à família, a 3 de dezembro de 1885, insistia, entre vários elogios à região, que não se tornara mercador de escravos mas de "velhos fuzis de pistão, que já não se usam há quarenta anos", então muito apetecidos pelo rei de Xoa, Menelik II. Rimbaud escrevia de Tadjoura, protectorado onde o tráfico de escravos ainda existia. O tráfico de armamento, mesmo que obsoleto, ocupou esses últimos tempos de vida da Poesia. É verosímil pensar nas mortes acidentais, nas explosões, na cegueira inesperada. A Poesia espreguiçava-se então nas suas metátoras involuntárias. Camões e o olho em Ceuta, Camilo e a têmpora em Ceide, um ano e quatro meses antes de Rimbaud. Lemos na estrofe final do soneto Vanitas de Olavo Bilac: "E o Poeta/ Pensa que vai cair, exausto, ao pé de um mundo,/ E cai — vaidade humana! — ao pé de um grão de areia...". Em Áden, Rimbaud conservou como endereço postal L' Hôtel de l' Univers.
12. A segunda estrofe do poema de Jorge de Sena: "Mas do centro do universo,/ do coração que a humanidade ainda não tem,/ do âmago das dores que ainda não sente,/ da terra a passar toda pela carne,/ da carne apenas vida sobre a terra,/ uns poucos homens não sofrem nem contemplam:/ ardem nas chamas que aos outros faltam". O novo coração de carne é de soja, o novo pão não tem glúten, o leite de amêndoas verte da teta de Juno para a nova Via Láctea dos intolerantes. As proteínas brancas do Paraíso substituem as vermelhas do Inferno e fortalecem o músculo agrolactoflexor do pescoço em substituição do velho músculo cardíaco. Áden-Hades é uma caixa banal para a Posta-Restante dos poetas narcotizados com o incenso de espuma amanhado nas encostas soalheiras dos auditórios. Longe, do outro lado do Mar, encontra-se o Deserto, os tiros longínquos sobre as carcaças limpas pelos chacais, os estampidos do Sol sobre os lagartos. Repete-se sobre as dunas a visão technicolor do coração ardente devorado pela jovem dama quase nua na Vita Nuova, agora a encher lentamente de areias cálidas os olhos do Poeta em agonia, gritando — ao largo! — as contradanças das marés vivas.
Notas
"Micropaisagem", in OLIVEIRA, Carlos de. O Aprendiz de Feiticeiro, Lisboa: Assírio & Alvim, 2004, p. 184.
Ana Rodrigues Oliveira e António Resende de Oliveira, "A mulher", in VASCONCELOS E SOUSA, Bernardo (coord.). História da Vida Privada em Portugal — a Idade Média, Lisboa: Círculo de Leitores/Temas e Debates, 2010, p. 310.
Em Coroa da Terra (1946), cf. SENA, Jorge de. Poesia 1, org. Jorge Fazenda Lourenço, Lisboa: Guimarães/Babel, 2013, p. 87.
FARIA, Daniel. Sétimo Dia, Lisboa: Assírio & Alvim, 2021, p. 63.
RIMBAUD, Arthur. Obra Completa, trad. Miguel Serras Pereira e João Moita, Lisboa: Relógio D'Água, 2018, p. 656.
BILAC, Olavo. Poesias, Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 1985, p. 112.
Leça, 14 de novembro de 2021.
[Fotos de Francisco Saraiva Fino]
dezembro, 2021
Francisco Saraiva Fino é licenciado em Línguas e Literaturas Portuguesas, variante de Estudos Portugueses, pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto e mestre em Criações Literárias Contemporâneas, na especialidade de teoria da criação literária, pela Universidade de Évora (Portugal). É colaborador do CEL (Universidade de Évora) e membro das Comissões de Espólio e de Edição da obra do poeta português Daniel Faria. Além de trabalhos de edição, tem publicado ensaios e recensões em livros e revistas nacionais e internacionais e apresentado comunicações em colóquios. É o autor de A Multiplicação do Espaço — Ensaios sobre a Poesia de Daniel Faria (Teórica Edições, 2020). Os seus domínios de investigação têm-se centrado na poesia portuguesa moderna e contemporânea, na teoria literária e no diálogo interartes.