Sob o signo da suspensão



Ao receber, de modo inaudito, o arquivo do livro Mácula — para lançamento digital — confesso que fiquei em suspensão. Estamos todos sob estes tempos inclassificáveis e em suspensão. Por um impedimento, pela falta de uma vacina, aguardando uma saída para qualquer lugar seguro, habitável. Eu, em minha redoma, não desejava mais cargas emocionais além das tantas já vivenciadas de 2016 para cá, desde a ruptura institucional até estes dias de Pandemia e Pandemônio. Acirramento das relações de violência em todos os sentidos, dos físicos aos simbólicos. Abri Mácula, inicialmente, como quem pede um tempo. Ler seus primeiros textos, uma responsabilidade, e dali a leitura, de modo dinâmico da estrutura que se definiria então dividida em duas partes. A saber: epígrafes ensaísticas e confissões negativas.

Da leitura dinâmica ao lançamento, a obra pedia a minha presença. Ouvidos além da ponte, olhos atentos, mente aberta, corpo presente. Afeto. Os mesmos que evitei inicialmente. Entrar em um espaço de força simbólica, introspectiva e subjetiva do grau poético de Mariana Basílio, é entrar e sair transformada sob sua circularidade. E assim tem sido esta suspensão. Um dia, uma página, no outro, um conjunto de poemas. Eu, desordenada. No entanto, maravilhada ao encontrar ali a conjuntura artística belamente ritmada. Os dias, no mais congruente trabalho de sensibilidades que eu já lera. Uma prima dona poética dos dias. Sublime tessitura dos nervos, da pele, da ossatura, dos tempos. Eu, já entregue, trago aqui minha leitura. Um jeito também intenso de ser. E assim como o ser e o tempo da poesia. Como afirma Alfredo Bosi (1986, p. 61.), que me veio da estante às mãos dar-me cobertura:


A linguagem traz em si o estigma da separação. É preciso, às vezes resignar-se a mais essa pena. Pensando assim já não me impaciento, como outrora, quando ouvia dos críticos estruturalistas em coros e hinos e hosanas à metalinguagem. Tudo tem a sua hora: falar sobre a fala, poetar sobre a poesia, medusar-se no signo, são tendências fortes do espírito moderno, que no limite como ensinou Hegel, bloqueariam o discurso representativo e emotivo. Na verdade, não o fazem de todo por mais que o tentem. A dialética que pulsa na vida da poesia não é diferente da dialética social: como esta não supera sem conservar.


Apresentar Mácula, a obra de Mariana Basílio, é também entrar no reino das palavras, por que são de signos criativos nossa metalinguagem neste texto-ensaio paralelo. Também representação.


A linguagem indica os seres ou os evoca. Karl Buhler, fenomenólogo, explorou em um estudo vigoroso (Teoria del Lenguaje, Madri, Revista de Ocidente, SS 6-9.) as riquezas do campo demonstrativo da linguagem assumidas pelas formas dêiticas: artigos, demonstrativos, advérbios de lugar e de tempo, recursos anafóricos da sintaxe... Mas o que importa apreender é a diferença específica dos modos imagético e linguístico de acesso ao real; diversidade que se impõe apesar da semelhança do fim: presentificar o mundo. 

[...]

Um signo é algo que está para alguém no lugar de outra coisa sob algum aspecto ou capacidade" (Pierce, Coll. Pap., 2 228). Formando-se com o apoio exclusivo da corrente de ar em contato com os órgãos da fala, a linguagem se vale de uma tática sua para recortar, transpor e socializar as percepções e os sentimentos que o homem é capaz de experimentar (BOSI, 1986. p. 22).


Assim vamos ao recorte, ao ensaio circunstancial da obra pela via da seleção nos textos abaixo escolhidos, lembrando de que se trata de uma jovem poeta, mulher, em cuja trajetória, ser mestre em Educação, faz aqui e agora, Brasil anos 2020, uma enorme diferença. Uma jovem mulher, com o sentido corporal em plena ação de fazer poesia como práxis. Em plena gestação de uma obra matriz-mácula, engendrando nele uma outra obra: Pangeia — a etimologia do Ser — obra lançada de modo virtual em seleção realizada pela BNP e que lhe conferiu um primeiro lugar.

Também recém anunciada a sua segunda gestação no ventre, sua menina, Alma. Gerando nova obra poética, mulher gerando nova mulher. Gestando no ritmo, a imagem, o símbolo em representação dialética de nossas muitas contradições do passado sob sua memória, seus ritos e mitos, desde os dias de 1922, com o Modernismo, aos de 2020/22, transversalizando-se por novos códigos: pós modernos, desestruturais e críticos, portanto, de resistência. Em plena Idade Mídia que segundo Walter Longo: "Cada um de nós será um agente de mídia, formador de opinião e gerador de conhecimento compartilhado em rede".

Tal fora engendrada Mácula pergunto, também além de uma gestação lírica individual, em interlocução entre os seus amigos de perfil nas redes sociais aqui selecionados em palavras que refletissem este tempos de pandemia e, por ela confeccionados, os poemas que compõem a obra — e 50 foram estes símbolos e suas confissões negativas — penso que sim refletem e indiciam nosso tempo. São eles:

  1. Ódio – Mirian Santos
  2. Sobrevivência – Mateus P. Gomes
  3. Desânimo – Silvana Medeiros
  4. Incerteza – Katia Marchese, Marco Severo e Alexandre Buzeto;
  5. Remoto – Artur Janeiro;
  6. Inexistência – Osvaldo Rodrigues;
  7. Angústia – Daniel Minchoni;
  8. Melancolia – Pâmela Filipini;
  9. Inferno – Paula Autran;
  10. Náusea – Paula Oliveira;
  11. Crocodilo – Daniel Ribas
  12. Revolta – Jussara Salazar;
  13. Propagação – Tom Kbélo;
  14. Devir – Marina Costin Fuser;
  15. Travessia – Catarina Eya;
  16. Paranoia – Cleo Meira;
  17. Desesperança – Ryta Alves, Janaina Michelini e Fernando Righi Marco;
  18. Capivara – Matheus Muradas;
  19. Paralelepípedos – Anônimo(a);
  20. Contato – Priscilla Menezes;
  21. Retratação – Danielle Naves;
  22. Disponibilidade – Gabriela Greeb
  23. Refúgio – Amanda Vital;
  24. Peste – Luiz Carlos Schroeder;
  25. Luto – Maria Eduarda Dos Anjos;
  26. Labirinto – Bruno Ribeiro;
  27. Concentração – Tarso de Melo;
  28. Essência – Naiara Alves e Vânia Ortiz;
  29. Resiliência – Monique Malcher, Thamara Duarte, Eduardo Rangel, Michelle Zanin, Ronilson Paulino e Jhenifer Silva;
  30. Geometria – Lucas Ribeiro;
  31. Vertigo – Danielle Naves;
  32. Atenção – Alexandre Brandão;
  33. Socorro – Lia Presgrave;
  34. Desgaste – André Luís Câmara;
  35. Importância – Patrícia Abdalla;
  36. Cansaço – Mariana Belize;
  37. Termômetro – André Luiz Pinto;
  38. Impermanência – Claudia Vasques e Laura Redfern Navarro;
  39. Peso – Anna Clara de Vitto;
  40. Rizomas – Fábio Lopes;
  41. Eros – Caroline Rodrigues;
  42. Abnegação – Iatamyra Rocha Freire;
  43. Névoa – Raquel Naveira;
  44. Adaptação – Iza Kami Mura;
  45. Redenção – João Farias;
  46. Lavra – Susana Ventura;
  47. Resistência – Emanuel Priolli e Luciana Fonseca;
  48. Solitude – Eunice Nascimento;
  49. Ternura – Lu Casaes;
  50. Coragem – Sara Albuquerque, Cristina Matias e Daniel Maranhão.

Seria Mácula o olho de vidro, por onde muitos destes seus versos estão aqui ilustrados? As notícias que lhe chegam em manchetes, as manobras, as manchas? Marca, maca, manipulação. A íris dos dias. Tão bem representado por seu book trailer (nas referências). Pergunto-me, instigada, ao perceber estes diálogos.


Outros dias, eles virão. Essas noites

de recursos feitos para libertar o réu

e o barulho do pneu, feito estepe,

recebendo a simplicidade de um não. Inexistência


A voz não corresponderá ao apelo

das seções expostas no globo ocular,

ambos alheios à falência da justiça.

(BASÍLIO, 2020.).


"Diálogo, encontrar com os outros a alteridade. Pensar a polis — isso é democrático. Projetar no outro ou ouvir o outro, reconhecer, dialogar, lutar com o outro estar ao lado. Encontro produtivo e nos tornar melhores, colaborativos. O que se faz juntos. Demandas do mundo, as mazelas, as perguntas. Internet é um laboratório de experiências — e um lugar de liberdade de expressão. Meios TV cinema Internet as redes sociais inclusas, promovendo a nossa subjetivação-interação. Pensar o meio como instrumento de diálogo: medialidade e intersubjetividades" (TIBURI, 2011).


covas e fakenews adornam o meu país.

Penetro sorrateiramente no interior das palavras.

(BASÍLIO 2020).


Do sol ao sopro,

do coro ao causo, da gravidade ao detalhe — uma Mácula — e

suas feridas, seus versos, os protestantes e os adversos, as sinas

e os sinos das religiões renegadas, o estandarte dos carros,

perpassando as décadas, com mais gasolina e menos vontade.

A poesia não cura. A poesia não invade. A poesia expõe.


Abaixo os puristas. Abaixo os donos da razão.


E dignifica a quem nela se indignar: escrevendo o não

pensado, realizado outra vez, entre o passado e o futuro, o

abismo da humanidade, sendo capaz de ultrapassá-lo. A poesia

se estanca. A poesia arca. A poesia vende. A poesia reside. A

poesia machuca. A poesia não parte. A poesia invade. A poesia

conquista. A poesia emancipa. E não se arrepende.

(BASÍLIO, 2020 )


Resta um e resta outro em mim:

O vulto, a sombra, o sopro. Palavra Inaugural da autora


Uma doença grave, talvez o salto

de cordas para se aventurar.

Edifícios e suicidas em pares.

Com santos, cantigas e rebanhos.

Os toureiros e as chispas carregam

diamantes e sangues expostos.

Uma precariedade condizente:

a gosma, o nó, o soluço e o bafo

sobrevivem aos desejos triunfantes.

Às vezes um gesto, ou um grito.

As formas naturais são ácidas e

a brevidade segue a sina, obscura.

(BASÍLIO, 2020).


Aceito e componho essa renda fina

com a qual cubro as minhas mentiras.

Formo cubismos entre os números,

como se tocasse a ternura perdida.

(BASÍLIO, 2020).


A voz não corresponderá ao apelo

das seções expostas no globo ocular,

ambos alheios à falência da justiça.

(BASÍLIO, 2020).


pedestais incorporam os abismos e

os amores, pairando vazios na TV.

Outros dias, eles virão. Essas noites

de recursos feitos para libertar o réu

e o barulho do pneu, feito estepe,

recebendo a simplicidade de um não.

(BASÍLIO, 2020).


Para além das questões conteudísticas, estamos frente a um trabalho artístico literário.

A obra de arte, se nos entregamos a ela, tem uma pretensão total ou absoluta sobre nós. A finalidade da arte não é ser uma auxiliar da verdade, seja particular e histórica e eterna. "Se arte é alguma coisa", como escreve Robbe-Grillet, "ela é tudo", nesse caso ela há de ser autossuficiente, e não pode existir nada além dela".


Continua:


Frequentemente aplico à obra de arte a metáfora de um modo de alimentação. O envolvimento com uma obra de arte acarreta, sem dúvida, a experiência de um afastamento do mundo. Mas a obra de arte em si é também um objeto vibrante, mágico e exemplar que nos devolve ao mundo mais abertos e enriquecidos" SUSAN SONTAG, Contra a Interpretação: e outros ensaios-1 edição-São Paulo: Companhia das Letras,2020.


O símbolo verbal — o representante que não é o que representa e nem mesmo com ele se parece, mas o significa, eis então o nosso material expresso em papel em forma poética. Em um poema longo ou em um poema, apenas? Seguindo a ideia dos Modernistas de libertar a expressão no verso livre, poesia-pílula, no originário da qual nossa língua é mater? E Oswald de Andrade, Mário de Andrade são seus representantes históricos? A síntese? O que se percebe na obra em questão, a síntese, se dá em muitas imagens, simulacros do olho de vidro, da íris orbitando fatos. Não em versos, mas em linossignos, como bem descreve o Modernista Cassiano Ricardo em Algumas Reflexões sobre poética de Vanguarda, a saber:


A CONTRIBUIÇÃO MODERNISTA


O Modernismo contribuiu poderosamente para a distinção entre verso e poema, verso e poesia, poesia e poema.


Substituiu a métrica convencional pelo ritmo, existêncial; instituiu o verso-livre, que revogou os tratados de versificação; procurou criar um dialeto poético, específico, já antidiscursivo; reabilitou a intuição contra o intelectualismo parasitário e sofista; reformou o processo imagístico, compositivo, em favor de uma maior autonomia da linguagem.


A poesia de vanguarda, no experimento concretista e no "práxis" é que chegou ao máximo de distinção, continuando o diálogo de 22:


A "palavra em liberdade", isto é, fora do contexto habitual; a negação do verso, que a tanto equivale o verso-livre; o mínimo de palavras" que corresponde ao "mínimo telegráfico"; o ataque ao lógico-discursivo" pela ruptura da sintaxe; os elementos plásticos, volumes, côres, formas geométricas; o abandono do adjetivo pela valorização do verbo e do substantivo; a "fisionomia gráfica", a supressão das maiúsculas iniciais, o imagismo visual "ideogrâmico" de hoje; a espacialização que está nas relações entre as palavras por um critério de proximidade e semelhança (como em "Drogaria" de Luís Aranha); a "frase cinematográfica", nos instantâneos "montés" de Blaise Cendras; a imitação do objeto descrito que está em "Rêde", de Jorge Fernandes; o poema-minuto, como na poesia pré-concreta de Oswald de Andrade; a "palavra-montagem", ideogrâmica, já feita na linguagem brasílica, primitiva e conscientizada pelo neo-indianismo de 22 (grupo Anta); redundância, a reduplicação (de sílaba ou palavras) nos poemas de Raul Bopp.


O principal, porém, do concretismo e do "práxis" foi a atitude radical contra o verso e contra a prosa, a um só tempo, em favor do poema como poema, como o procurei provar em "22 e a Poesia de Hoje".

Um grande crítico, Tristão de Athayde, referindo-se apenas ao movimento de 22, nota, com sua argúcia de mestre, que o Modernismo inicialmente adotou a poesia contra o verso; na segunda fase, o verso contra a poesia ou — como êle melhor o diz — o primado do verso sôbre a poesia. O que se dá agora é coisa bem diversa: nem verso, nem prosa (poema em prosa) mas poema+ poesia" (RICARDO, 1964. p. 23-25).


Sobre o LINOSSIGNO:


Não é mais o caso (conclui-se) de se ver o verso onde êle não faz falta. O que importa é a "visão global", desversificante e simultânea do poema ou da página que o integra.


Poema que tenha um sentido de soma, em sua autonomia.


Com palavras "ilhadas", como em "Cemisfério"; ou "em movimento circular", como em "Rotação"; ou com interligações longitudinais e transversais que obnubilam o verso, mesmo quando êste teima em aflorar, como em "O Homem-Rã".


Pra que a palavra "verso" (que ainda persiste) não me importunasse mais, opus-lhe o nome de "linossigno".


"Linossigno" resolve, pra mim, o problema.


1) por significar "linha" (lino) pois tôda frase, ou mesmo uma só palavra tem, na linha, qualquer que seja a posição, a sua linha dorsal. Por mais que se desarticule (repita-se aqui o que já me coube dizer inicialmente) a palavra, (Cummings) com letras minúsculas pelo meio, tmeses e atomização de fonemas, a linha nunca poderá, em nossa língua, ser suprimida. Mesmo um poema ideogrâmico, baseado na sintaxe visual, que perturba a "leitura unidirecional"( Oliveira Bastos) se até certo ponto dissolve a frase, não evita a linha (quebrada, vertical, cruzada) sob pena de se tornar caótico.

2) Por significar "signo" sôbre o seu suporte gráfico, incluída aí fisicalidade de tipo em linha (linotipo). (RICARDO, 1964. p. 39, 40).

Continuação:


"Agora é preciso que o ôlho, que via o verso, se substitua pelo ôlho que não veja mais o verso (ou vício) de ótica. Que veja o "não-verso" o linossigno, em lugar do verso; e que saiba distinguir uma coisa da outra." (RICARDO, 1964. p. 42).


E ainda:

"O ir e vir do ôlho no verso causou êsse vício ótico, que é indispensável eliminar no ver o poema como conjunto, na totalidade do seu funcionamento". (RICARDO, 1964. p. 43).


O instante final e plástico é dela

da menina desaparecida — ela,

que saiu para passear de patins.

O golpe velado na intempérie

hoje a transforma em notícia.

Não obstante sentir a falta de ar, Angústia


Sentir que viver uma vida completa não

resolveria a mácula central do universo.

Sentir-me tão pobre e alvorecer, sem

pregas nas palavras, adornando a náusea.

(BASÍLIO, 2020).


Ao redor da vida animal, no seu reino,

o ser humano é mesmo superior.

Sabe compor o bom corte da carne,


apertar as veias finas do pescoço,

lamber o sangue de um chouriço

(BASÍLIO, 2020).


Ele e seu cão, a divisão da cola

para aquecer os corpos, e o pão

que mata a fome, feito ferro:

foram congelados em São Paulo,

e morreram abraçados, sem paz.


O céu borrado ao redor, a retina

retirada: rezam e se perdoam pela

humanidade – o vil metal, o dízimo,

toda bondade de figurar no clima,

à maneira cartesiana de salvar o planeta.


O ser humano não tece o amanhã.

Os fios de sol adornam a caça ilegal.

Um Vesúvio chispa lento e candente.

Assopra balões, os dentes na língua,

o imundo estado da água ser díspar

na contenção de qualquer mentira.

(BASÍLIO, 2020).


De trás do que me recordo,

ainda mais fundo devastam

as plantações de boias-frias.

O suor e o cuspe afundam nas

sombras e dissolvem os céus. Náusea


da terra devastada de urubus,

que nomearam de Vera Cruz.

(BASÍLIO, 2020).


Ainda mais lenta foi minha pisada

de volta à casa, após o compromisso

de não esquecer minha rua de terra,

e nossa pobreza, na mesa de pai e mãe.

Nos pântanos detrás das mansões, eu

pensei naquelas miudezas brasileiras,

alienáveis desde o que foi a Escravidão.


A jornada de trabalho acelerada.

Ver a fábrica, o porco prensado,

os operários logo avermelhados

nos intervalos, as feridas, os calos.


Nausea o claro enigma do abdômen

aglutinado no dolo da coerência.


Penso nas feridas radioativas.

No acidente de Goiás de 1987:

o desastre do césio-137

Um aparelho de radioterapia

levado pelos catadores ao

ferro-velho de Devair Ferreira.

Ele e seus dois funcionários

desmontaram o equipamento,

encontrando o seu segredo

o sal de césio, fino e azulado. Revolta


Ancoramos, enfim, separados ao

redor das pupilas, com cúpulas

de bruços sobre o dia, e voltamos

a recriar as nossas desonras.


Separei a fotografia dos três corpos

se aproximando: mãe, pai e filha.

Eles sorriem no silêncio de 1980,

unidos pela reprodução do elo e

da harmonia do jardim em que hoje

eu me sento, com um filho no colo.

(BASÍLIO, 2020)


A noite quase desce por aqui, afiada.

O mundo me entristece. O mundo, só.

E meu filho quase fala: é impossível o

olhar que se desloca, frágil e carente.

Com o úmido véu dessa ternura, ele


adentra em meu abraço, imaginando

que a graça e o peso, a opressão

e a liberdade, a reprodução da

espécie, me farão logo renascer

para vê-lo em spread, avançando

com seus futuros descendentes.


Mas fecho meus olhos e me esqueço.

Respiro, inspiro e levanto, alongando.

Sozinho, ele se equilibra e engatinha

com pétalas na mão, despedaçadas.

O bebê vê as diferenças de dois ramos.

Os países imaginários, uma pátria

em que quis morar, esse meu registro.

(BASÍLIO, 2020)


Mãe e filha, gritam e afundam

em minha cidade, Bauru, no

interior abismado de São Paulo.


Traduziram um sonho à parte,

em outra parte. Peso, pondero.

Penso na aflição de uma mãe.

E me afasto no alto, refletindo

o cotidiano que nos distancia.

A chuva as carrega, devagar.

São bonecas entre os galhos,

e as latarias batucam borbulhas:

ninguém poderá mais buscá-las. Devir

(BASÍLIO,2020).


Em memória de Luciene Regina do Prado e Bianca Prado da Silva


Assim, perpassando estes cem anos que inauguram o fazer modernista no Brasil, em um poema único e extenso, Mácula reúne grandezas estética e ética geniais. Engendra Pangeia a grande e toda a mãe terra de suas entranhas, convida, instiga e descreve estes tempos sombrios que nos chegam midiaticamente. Mácula é obra para ser pensada, tanto quanto lida, e digo leitura intersemiótica e, por isso mesmo, vasta e plurissignificativa.

Mácula é poesia resistência:


Diante da pseudototalidade forjada pela ideologia, a poesia deverá "ser feita por todos, não por um" era a palavra de ordem de Lautréamont. Este "ser feito por todos" não pode realizar-se materialmente, na forma da criação grupal, já que as realizações sociais não são comunitárias, mas acabou fazendo-se, de algum modo, como produção de sentido contra-ideológico válida para muitos. E quero ver em toda grande poesia moderna, a partir do Pré-Romantismo, uma forma de resistência simbólica aos discursos dominantes. (ALFREDO BOSI,1986).


Basílio, em Mácula, consegue, pela força dialética, pela força motriz de unir e congregar os opostos, através das confissões negativas, gerar uma obra realizada por um conjunto de símbolos oferecidos por 50 participantes convidados em sua rede social e, por isso, resistir ao lirismo que é redundância ou mesmo individualismo. Mácula não é reificação, pois: "Não quero saber do lirismo que não é libertação"— verso de Manuel Bandeira um dos autores do Modernismo de 1922 com quem Basílio dialoga. Assim como com Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto.


A poesia não temporiza. A poesia não se dilui. A poesia não se

vende. A poesia não oprime. A poesia não tarda. A poesia não

morre. A poesia restaura. A poesia rompe. A poesia alerta. A

poesia retrata. A poesia liberta. A poesia descobre. Quando o

tempo não se define enquanto meta cartorária, ou relógio, ou

frestas apontadas em calendários. Quando a sociedade e o

espetáculo se unem, lado a lado. A poesia não temporiza.

Porque não seduz ou engana, ao contrário, escama, inflama e

preenche o vácuo das palavras insignificantes com muito mais

significado.

(BASILIO 2020).


Memorial É este o nosso ciclo inevitável:

a manhã, a lama, o magma. Devir


Outros dias, eles virão. Essas noites

de recursos feitos para libertar o réu

e o barulho do pneu, feito estepe,

recebendo a simplicidade de um não. Inexistência

A voz não corresponderá ao apelo

das seções expostas no globo ocular,

ambos alheios à falência da justiça.

Expulsar assombrações e jeovás, assistir

às coisas se avolumando nos instantes.

Sentir que viver uma vida completa não

resolveria a mácula central do universo.

Sentir-me tão pobre e alvorecer, sem

pregas nas palavras, adornando a náusea. Angústia 

Penso em levitar, ou resistir.

(BASILIO,2020)


Conclusão

Envolvida há meses neste longo poema imagético, circular e de criativa verve, em sua extensão, ao corte em profundidade de suas negativas, destes linossignos tão bem conceituados pelo mestre Alfredo Bosi, posso garantir, não há uma conclusão. Há um instigar, um indicar a leitura, aguardar com paciência sob um corpo firme a apreensão de tamanho labor poético. Lembrando que ele em si engendra um novo poema longo — Pangeia, a Etimologia do ser — que inaugurará novas leituras. Basílio é plena no que faz e esculpe-escutas, quer como poeta tradutora, quer como ensaísta. Tem a apreensão dos tempos com seu olhar de Educadora que aponta os caminhos sem que nisso haja preterminação, pois são abertos. O leitor hábil, exigente poderá escolher. Não há imposições, sequer imperativos.

Da questão da participação, como ainda aponta Cassiano Ricardo em suas Algumas reflexões sobre poética de vanguarda sobre o "Modernismo que combatia a 'arte pela arte' em favor de uma arte associada ao destino dos homens e aos problemas de nossa época", (ANO. p 72). Basílio é referência. E ao indiciar as questões desta época, Mácula é signo, visto que inova em todos os sentidos, visto que intensifica este caráter fortemente visualizador e, sem fazer panfleto, propaganda ou manifesto simplesmente, mostra as injustiças que lhe doem, porque praticadas sobre a realidade percebida pela poeta, tal qual suas referências assim o fizeram: Oswald, Mário, Bandeira, João Cabral de Melo Neto, entre outros. E quem bem nos apontou Susan Sontag — uma obra de arte autossuficiente.

E aqui, apenas para fechar, retomo a epígrafe introdutória e, portanto, silencio-me.


'[...] Dizem: ele é uma palavra.

E chega o verão, e eu sou exatamente uma Palavra.

— Porque me amam até se despedaçarem todas as portas,

e por detrás de tudo, num lugar muito puro,

todas as coisas se unirem numa espécie de forte silêncio.

Herberto Helder



Sobre a autora


Mariana Basílio nasceu em Bauru, interior de São Paulo, em 1989. Escritora, poeta e tradutora. Licenciada em Pedagogia em 2012, concluiu Mestrado em Educação em 2015, ambos pela Universidade Estadual Paulista (UNESP).

Dedica-se à área literária desde 2014 e em sua atuação traduz diversos autores americanos e latino-americanos, entre eles: Alejandra Pizarnik, Denise Levertov, Edna St. Vincent Millay, Emily Dickinson, May Swenson, Silvina Ocampo e Williams Carlos Williams. É colaboradora de portais nacionais e internacionais, escrevendo também ensaios.

Publicou seu primeiro livro de poesia, Nepente, em 2015 (Giostri); o segundo livro de poemas, Sombras & luzes, dedicado ao poeta português Herberto Helder, foi publicado no Brasil (Penalux, 2016) e em Portugal (Prelo, 2018). Tem publicações de seus poemas em inúmeras revistas nacionais e internacionais.

Basílio é ainda vencedora do prêmio ProAC 32/2017 do Governo de São Paulo pelo seu terceiro livro de poesia, Tríptico Vital (Patuá, 2018), dedicado a Hilda Hilst. O livro foi um dos 11 finalistas da Residência Literária do Sesc 2018. E Mácula, premiado com o Programa de Ação Cultural do Governo de São Paulo (ProAC 23/2019). Lançado de modo virtual e festa literária, em 2020.



Referências


BASÍLIO, Mariana. Mácula. SÃO PAULO: Editora Patuá, 2020. Premiado com o Programa de Ação Cultural do Governo de São Paulo (ProAC 23/2019)

_______. Site oficial. Disponível em <https://www.marianabasilio.com.br>

BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Editora Cultrix, 1986.

LONGO, Walter. O fim da idade média e o início da idade mídia. Rio de Janeiro: Altabooks, 2019.

RICARDO, Cassiano. Algumas reflexões sobre poética de vanguarda. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio editora, 1964.

TIBURI, Márcia. Márcia Tiburi fala sobre seu livro Olho de vidro. Youtube, Livraria Cultura, 2011. Disponível em https://youtu.be/sL446Ip5_QM

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O livro: Mariana Basílio. Mácula.
São Paulo: Patuá, 2020, 208 págs., R$ 30,00
Clique aqui para comprar.
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dezembro, 2021



Sílvia Schmidt (São Paulo/SP). É graduada em Letras — Português Inglês — e respectivas Literaturas/Fatea. Especialista em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP, Sociologia e Política pela USP, e Ontopsicologia em SC. Ministrou aulas de Literatura Brasileira por quase 20 anos. A seguir, projetos em processo de lançamento, que serão realizados pelo selo Símbol@Digital e Artesanal selos, sob sua concepção e direção desde 2014: Duty Free: romance I (2000), Made in Brasil: romance II, Circunstâncias — uma polifonia do pensar: poesia (2018), Baladas para ou um caderno de passagens do mal: poesia (2017), Palavras sem Fronteiras: coletânea (2017/8) Encontros — uma cartografia do tempo: contos (2012), Poemas à Carta da Terra: poesia (2012), Retratos da quarentena: coletânea (Selo Símbolo Artesanal, 2021), Mil pétalas púrpuras: ensaios, (Helvetia editions 2021, em pré-lançamento).