©giovanna aryafara

 
 
 
 
 
 
 

GÊNESE



No princípio era o céu

tudo o que tinha Deusmira,

e sonhava um punhado de terra

lá no alto do Capão.


Foi que apareceu Genésio

a lhe encher de sonho e de mundo

e já no outro segundo

sumir na escuridão.


O espírito de Deusmira bailava

trôpego sob a água

balouçante, pesada, sofrida

que levava na cabeça e lhe doía

o pescoço, a espinha, os joelhos 

lá pelo meio da subida.


No primeiro mês foi bonito

comer do pouco que tinha;

mirar o Sol e a Lua

alinhavando os dias.

Sentiu enjoo e tontura,

achou estranho ter fome

enquanto o ventre crescia.


No segundo, já sabia. 

Plantou cebolas, alfaces

e um futuro pomar.

Seu rebento teria de comer

e haveria também de brincar.


No terceiro, dinheirinho parco

fez um vestido de chita

todo estampado de peixes.

Quis se vestir de água

e sonhar sua pequena Oxum

a lhe embolar a anágua;

lhe devolver a infância;

lavar, enfim, sua mágoa.


No quarto mês, umas galinhas

pra garantir uns ovos

e catar pelo terreiro

barro, barbeiro, bosta,

larva de mosquito bicheiro.


No quinto, achou um cão

Foi lhe seguindo os passos.

Deu-lhe o nome de Irmão.


No sexto mês foi ao chão.

Sentiu dores, tonturas

vertigens prematuras

e trouxe à luz a semente,

a quem, por tudo da vida

que conhecia e sabia,

deu de chamar Solidão.


No sétimo veio o diabo!

Coisa de terra, papel,

serviço feito, maldade

de que nem tinha noção.

Tentou gritar, quis brigar...

Trator levou sua lida;

Oficial, sua cria.

Deusmira descansou

sono eterno

num caixote do rabecão.







A FONTE



No fim da rua tinha uma bica farta

Aonde íamos, meu pai e eu,

Baldes pendentes nas mãos,

Buscar a água que sempre faltava

Na João Monlevade da minha infância.


Vê, meu filho, que belo?

No fim da rua é onde jorra a vida!


Recordo-me disso agora

Com renovada alegria,

Porque, quando o papai se foi

Eu chorei tanto, tanto...

E, no entanto,

Ele apenas tinha alcançado a bica.







CLAUSURA



Pardais empoleirados

nos fios de alta tensão lá fora

pipilam como quem gargalha,

enquanto arrancam minúsculas penas

de si mesmos,

que o vento carrega 

para dentro da minha janela

constantemente aberta para a vida.


Não sabem que a tensão é alta,

que a saudade é muita,

que a pena é dura,

que esse Sol machuca,

derramado sobre a manhã

de mais um dia de clausura.

Porque piam,

grasnam,

saltitam,

mas não cantam.







CONDOR



Levantar com leveza o véu

da poesia.

Tocar com cuidado 

a sua pele volátil.

Agarrar sua carne movediça,

abrir suas pernas sorrateiras

como quem desfaz as costuras

da memória.

Beijar seu ventre,

beber seu sumo.

Penetrar com força

suas entranhas de mistérios.


Sonhar um verso nascituro

que seja forte o bastante

para sobreviver, leve

o suficiente para voar

feito um condor.







JANETE



Quando Janete cantava

era uma briga de meninos

pegar um lugar no muro

para vê-la se banhar.

Lá ia o cabelo ao alto,

espuma a pingar dos seios,

a pele lisa, preta, linda

feito noite e luar.


Janete sempre sorridente,

crente, solícita, humilde,

banhava-se desprevenida

a entoar seu louvor.


Será que Janete sabia

da apoteose no muro?

Teria cometido o pecado

da pobreza, que adiava sempre

e sempre 

botar vidro naquela janela

e se banhar sem se expor?


Se não, 

por que a providência

em que tanto cria

não lhe alertou da fúria,

da curra, da surra, da morte

pelas mãos do seu pastor?







METADE



Aquele projeto de vida,

o Bourbon, o cigarro, a louça,

o curso de fotografia,

o poema sobre Hilda Hilst,

os livros de filosofia,

o travesseiro de flores

regadas pelo seu suor...


Das coisas que você deixou

pela metade,

sou a que ainda espera.







O ESCRITOR



Observas o escritor no seu ofício

e o supões a conversar com a solidão.

Não tem o olhar que lhe aguarde a contracena,

nem quem o lance a rodopiar no espaço,

nenhum modelo a lhe inspirar o traço,

ninguém com uma batuta à mão.


Não vês que lá

onde só ele pisa,

seres pulsantes lhe suplicam a escrita

e lhes dar um sopro de vida

é sua missão.







POEMA DE AMOR



Há muito tento escrever um poema

que fale de amor.

Há muito tento, tento

escrever um poema que fale.


Há muito tento escrever

qualquer poema

que diga alguma coisa.

Há tempos tenho tentado.


Rabisco coisas, refaço, jogo no lixo

eletrônico do esquecimento.


O que aconteceu com a gente?

Gente — digo — aquela turma que sente

e que sofre; tem náuseas do ridículo,

vertigens sobre o horizonte,

saudades de qualquer coisa...

Gente!


Há muito tento entender

para escrever um poema

que fale de amor.


Que este seja um poema

à saudade que tenho

de escrever um poema

sobre essas coisas simples

e fáceis de a gente fazer.

Amor, por exemplo.







INSÔNIA



Nessas madrugadas frias de outono

em que a morte ronda lá fora,

tenho me arrastado sempre mais

ao mais profundo de mim.

Àquele lugar onde nada,

absolutamente nada teve, algum dia,

noites de dormir sono.


Lá ainda tilintam as tulipas

entre gargalhadas e abraços.

Sinto o cheiro do torresmo fritando

na panela do Juventino.

Como estará o velho barista

e seu sorriso bigodudo, seu avental surrado;

como estará sem poder abrir a Lua Nova

nesses tempos de luas inodoras

e tão incapazes de brincar?


Lá ouço amigos ternos

que debatem o próprio debate. 

Falam sobre a própria palavra

porque sabem dar a ela

muitas vidas.

Com ela fazem carinho

ou começam um motim.


Sinto a risada da minha filha

ao abraço afetuoso;

minha companheira a receber pessoas;

irmãs me contam sobre os dias

e eu sorrio, agradecido

por esse tudo tão absurdo

de tão mágico que me cerca.


Então me acena um respirar lá fora

para sonhar um mundo que ainda pulsa:

um cão morde um pet de refrigerante

e faz um barulho infernal;

o trem da MRS buzina exatamente às três,

quando passa sobre o viaduto:

alguma alma ainda está nos trilhos!

E — que coisa — um velho bêbado

sobe cantarolando a rua vazia

uma canção que jamais ouvi.

Porque nunca o reparei?

Sobe arrastando a sombra

e a sobra do tempo que ainda tem.

Sombra e sobra quase que se diluem

à luz de um poste triste e sonolento.


O homem vai e sua cantiga fica.

Segue a ecoar nos meus ouvidos:

Mas no seu abraço eu fecho os olhos

e durmo calmo pra você sonhar!


Volto à cama com a canção

no peito, recordo Dona Leila, sua mão

que era tão firme e terna

a afagar a cabeleira preta

do seu assustado menino índio.


Fecho os olhos e

durmo calmo

pra ela sonhar

comigo.







RAZÃO



Por cinco vezes, com mais força

topei com a voz da razão.


Na primeira: ame e estude!

Essa valeu meu quinhão.


A segunda: não sonhe tanto,

mantenha os pés no chão.


A terceira: não se importe!

As vidas são o que são...


A quarta: esqueça o teatro,

música, poesia,

concentre-se no direito.


Na quinta

não ouvi mais não!







PRIMAVERA



Ando por aí a recolher

e guardar pequenos amanhãs.

Eu sei, dirão: carpe diem!

Que diem, cara-pálida? — 

respondo algumas vezes.

É com tristeza que caminho

entre os escombros soturnos

de minha terra;

que observo o desânimo e o assombro

plasmados nos rostos das pessoas

de minha pátria.


O que posso é trabalhar futuros.

O que há de bonito na semente

é que ela guarda uma nova Primavera.







TIROS



Palavras não são fáceis.

Nos últimos tempos

Mais ferem que afagam.

Línguas ressequidas

Olhos obnublados

Braços atrofiados

Não ultrapassam a janela

E dançam os dedos

Sobre os gatilhos.


Teríamos nos abraçado

Em um cenário real.


No entanto

Vez que outra

Algum morteiro escapa

Dos mais obscuros refúgios da alma

Onde é preciso sempre

Que se mantenha acesa uma vela.

 



setembro, 2021



Ádlei Carvalho é mineiro, de Belo Horizonte, autor das seguintes obras: A travessia (romance, 2008); Todas as palavras de amor (poesia, 2008); Pequeno tratado sobre o grande nada & outras insignificâncias (poesia, 2010, com os poetas Cláudio B. Carlos e Cleber Pacheco); Triângulo vermelho (romance, 2011); Canção para despertar os pássaros & novos planos de voo (poesia, 2013); Uma estrela nos olhos do menino (romance infantojuvenil, 2018); As nove páginas de Alberto Silva (romance, 2019). Tem poemas publicados também nas antologias Palavras veladas (2009) e Phoenix (2012).


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