GÊNESE
No princípio era o céu
tudo o que tinha Deusmira,
e sonhava um punhado de terra
lá no alto do Capão.
Foi que apareceu Genésio
a lhe encher de sonho e de mundo
e já no outro segundo
sumir na escuridão.
O espírito de Deusmira bailava
trôpego sob a água
balouçante, pesada, sofrida
que levava na cabeça e lhe doía
o pescoço, a espinha, os joelhos
lá pelo meio da subida.
No primeiro mês foi bonito
comer do pouco que tinha;
mirar o Sol e a Lua
alinhavando os dias.
Sentiu enjoo e tontura,
achou estranho ter fome
enquanto o ventre crescia.
No segundo, já sabia.
Plantou cebolas, alfaces
e um futuro pomar.
Seu rebento teria de comer
e haveria também de brincar.
No terceiro, dinheirinho parco
fez um vestido de chita
todo estampado de peixes.
Quis se vestir de água
e sonhar sua pequena Oxum
a lhe embolar a anágua;
lhe devolver a infância;
lavar, enfim, sua mágoa.
No quarto mês, umas galinhas
pra garantir uns ovos
e catar pelo terreiro
barro, barbeiro, bosta,
larva de mosquito bicheiro.
No quinto, achou um cão
Foi lhe seguindo os passos.
Deu-lhe o nome de Irmão.
No sexto mês foi ao chão.
Sentiu dores, tonturas
vertigens prematuras
e trouxe à luz a semente,
a quem, por tudo da vida
que conhecia e sabia,
deu de chamar Solidão.
No sétimo veio o diabo!
Coisa de terra, papel,
serviço feito, maldade
de que nem tinha noção.
Tentou gritar, quis brigar...
Trator levou sua lida;
Oficial, sua cria.
Deusmira descansou
sono eterno
num caixote do rabecão.
A FONTE
No fim da rua tinha uma bica farta
Aonde íamos, meu pai e eu,
Baldes pendentes nas mãos,
Buscar a água que sempre faltava
Na João Monlevade da minha infância.
Vê, meu filho, que belo?
No fim da rua é onde jorra a vida!
Recordo-me disso agora
Com renovada alegria,
Porque, quando o papai se foi
Eu chorei tanto, tanto...
E, no entanto,
Ele apenas tinha alcançado a bica.
CLAUSURA
Pardais empoleirados
nos fios de alta tensão lá fora
pipilam como quem gargalha,
enquanto arrancam minúsculas penas
de si mesmos,
que o vento carrega
para dentro da minha janela
constantemente aberta para a vida.
Não sabem que a tensão é alta,
que a saudade é muita,
que a pena é dura,
que esse Sol machuca,
derramado sobre a manhã
de mais um dia de clausura.
Porque piam,
grasnam,
saltitam,
mas não cantam.
CONDOR
Levantar com leveza o véu
da poesia.
Tocar com cuidado
a sua pele volátil.
Agarrar sua carne movediça,
abrir suas pernas sorrateiras
como quem desfaz as costuras
da memória.
Beijar seu ventre,
beber seu sumo.
Penetrar com força
suas entranhas de mistérios.
Sonhar um verso nascituro
que seja forte o bastante
para sobreviver, leve
o suficiente para voar
feito um condor.
JANETE
Quando Janete cantava
era uma briga de meninos
pegar um lugar no muro
para vê-la se banhar.
Lá ia o cabelo ao alto,
espuma a pingar dos seios,
a pele lisa, preta, linda
feito noite e luar.
Janete sempre sorridente,
crente, solícita, humilde,
banhava-se desprevenida
a entoar seu louvor.
Será que Janete sabia
da apoteose no muro?
Teria cometido o pecado
da pobreza, que adiava sempre
e sempre
botar vidro naquela janela
e se banhar sem se expor?
Se não,
por que a providência
em que tanto cria
não lhe alertou da fúria,
da curra, da surra, da morte
pelas mãos do seu pastor?
METADE
Aquele projeto de vida,
o Bourbon, o cigarro, a louça,
o curso de fotografia,
o poema sobre Hilda Hilst,
os livros de filosofia,
o travesseiro de flores
regadas pelo seu suor...
Das coisas que você deixou
pela metade,
sou a que ainda espera.
O ESCRITOR
Observas o escritor no seu ofício
e o supões a conversar com a solidão.
Não tem o olhar que lhe aguarde a contracena,
nem quem o lance a rodopiar no espaço,
nenhum modelo a lhe inspirar o traço,
ninguém com uma batuta à mão.
Não vês que lá
onde só ele pisa,
seres pulsantes lhe suplicam a escrita
e lhes dar um sopro de vida
é sua missão.
POEMA DE AMOR
Há muito tento escrever um poema
que fale de amor.
Há muito tento, tento
escrever um poema que fale.
Há muito tento escrever
qualquer poema
que diga alguma coisa.
Há tempos tenho tentado.
Rabisco coisas, refaço, jogo no lixo
eletrônico do esquecimento.
O que aconteceu com a gente?
Gente — digo — aquela turma que sente
e que sofre; tem náuseas do ridículo,
vertigens sobre o horizonte,
saudades de qualquer coisa...
Gente!
Há muito tento entender
para escrever um poema
que fale de amor.
Que este seja um poema
à saudade que tenho
de escrever um poema
sobre essas coisas simples
e fáceis de a gente fazer.
Amor, por exemplo.
INSÔNIA
Nessas madrugadas frias de outono
em que a morte ronda lá fora,
tenho me arrastado sempre mais
ao mais profundo de mim.
Àquele lugar onde nada,
absolutamente nada teve, algum dia,
noites de dormir sono.
Lá ainda tilintam as tulipas
entre gargalhadas e abraços.
Sinto o cheiro do torresmo fritando
na panela do Juventino.
Como estará o velho barista
e seu sorriso bigodudo, seu avental surrado;
como estará sem poder abrir a Lua Nova
nesses tempos de luas inodoras
e tão incapazes de brincar?
Lá ouço amigos ternos
que debatem o próprio debate.
Falam sobre a própria palavra
porque sabem dar a ela
muitas vidas.
Com ela fazem carinho
ou começam um motim.
Sinto a risada da minha filha
ao abraço afetuoso;
minha companheira a receber pessoas;
irmãs me contam sobre os dias
e eu sorrio, agradecido
por esse tudo tão absurdo
de tão mágico que me cerca.
Então me acena um respirar lá fora
para sonhar um mundo que ainda pulsa:
um cão morde um pet de refrigerante
e faz um barulho infernal;
o trem da MRS buzina exatamente às três,
quando passa sobre o viaduto:
alguma alma ainda está nos trilhos!
E — que coisa — um velho bêbado
sobe cantarolando a rua vazia
uma canção que jamais ouvi.
Porque nunca o reparei?
Sobe arrastando a sombra
e a sobra do tempo que ainda tem.
Sombra e sobra quase que se diluem
à luz de um poste triste e sonolento.
O homem vai e sua cantiga fica.
Segue a ecoar nos meus ouvidos:
Mas no seu abraço eu fecho os olhos
e durmo calmo pra você sonhar!
Volto à cama com a canção
no peito, recordo Dona Leila, sua mão
que era tão firme e terna
a afagar a cabeleira preta
do seu assustado menino índio.
Fecho os olhos e
durmo calmo
pra ela sonhar
comigo.
RAZÃO
Por cinco vezes, com mais força
topei com a voz da razão.
Na primeira: ame e estude!
Essa valeu meu quinhão.
A segunda: não sonhe tanto,
mantenha os pés no chão.
A terceira: não se importe!
As vidas são o que são...
A quarta: esqueça o teatro,
música, poesia,
concentre-se no direito.
Na quinta
não ouvi mais não!
PRIMAVERA
Ando por aí a recolher
e guardar pequenos amanhãs.
Eu sei, dirão: carpe diem!
Que diem, cara-pálida? —
respondo algumas vezes.
É com tristeza que caminho
entre os escombros soturnos
de minha terra;
que observo o desânimo e o assombro
plasmados nos rostos das pessoas
de minha pátria.
O que posso é trabalhar futuros.
O que há de bonito na semente
é que ela guarda uma nova Primavera.
TIROS
Palavras não são fáceis.
Nos últimos tempos
Mais ferem que afagam.
Línguas ressequidas
Olhos obnublados
Braços atrofiados
Não ultrapassam a janela
E dançam os dedos
Sobre os gatilhos.
Teríamos nos abraçado
Em um cenário real.
No entanto
Vez que outra
Algum morteiro escapa
Dos mais obscuros refúgios da alma
Onde é preciso sempre
Que se mantenha acesa uma vela.
setembro, 2021
Ádlei Carvalho é mineiro, de Belo Horizonte, autor das seguintes obras: A travessia (romance, 2008); Todas as palavras de amor (poesia, 2008); Pequeno tratado sobre o grande nada & outras insignificâncias (poesia, 2010, com os poetas Cláudio B. Carlos e Cleber Pacheco); Triângulo vermelho (romance, 2011); Canção para despertar os pássaros & novos planos de voo (poesia, 2013); Uma estrela nos olhos do menino (romance infantojuvenil, 2018); As nove páginas de Alberto Silva (romance, 2019). Tem poemas publicados também nas antologias Palavras veladas (2009) e Phoenix (2012).
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