ESTANDARTE
ainda que a boca
esteja fechada
o deserto floresce
tu nem sabes do oásis
língua molhada
que lambe tua pele
a peleja da luz
contra o cerco da noite
acende e aquece
a luta é livre
mesmo de corpo atado
meu coração cresce.
VIAGEM
yuri disse que a terra é azul
disse no meio do breu impuro
fumava um baseado
enquanto isso
imagino um slow motion de
flashes estelares
emocionando o cosmonauta
quase olhou para o globo
o que ele viu na verdade
foi a saudosa distorção azulada
do olho esquerdo de valentina
a navilouca dos sete espaços.
A UM PASSO DO PARAÍSO
Para Orides
rasgo a carapuça
numa paranoia súbita
vomito o piloto automático
dessa estética retaguarda medusa
voo para longe de casa
são largas as asas
que me salvam da morte.
ZÉFIRO
o mestre da cidade vizinha
atirou um poema na minha testa
ganhei uma rachadura a céu aberto
nela cresceram oito elefantes
um a cada ano
às vezes incomoda o tamanho
de resto
cuido dessa ferida como quem ama
eles têm dificuldade em se acomodar
passam o dia cutucando meu córtex
eu respiro fundo e assobio
enquanto decoro minha varanda
com jacintos.
MANHÃS DE DOMINGO
certas manhãs de domingo
são tão verdes que poderíamos
comê-las com sal
nascem dentro da barriga
e fazem um barulho de fome
em manhãs de domingo
saudades crescem como plantas
fazem de toda lâmpada
um raio solar
são manhãs alargadas
cabem no resmungo das portas
no descanso de mãe
no fio da espada
manhãs de domingo se arrastam
enquanto são jorge põe fogo
na lua.
EIXO
a estrada de ferro
são luís — teresina
nunca existiu
conversa de lavadeira
disse me disse
vento de asa quebrada
que não sabe fazer curva
o mendigo dormente
ouviu o tal boato
e mudou para são paulo
foi tentar a vida
na linha azul.
MIUDEZA
um astronauta lírico contou
que da lua ninguém vê
a muralha da china
uma artesã circense
gosta de coisas miúdas
porque combate a miopia
de longe, muralha é montanha
e qualquer cidade, vazia
no dialeto humano
a olho nu é quase dentro
daquilo que significa.
POEMA PARA VIGÍLIA
no pedaço de noite
em que dormes
abraçado à fantasia
de um mundo tranquilo
ninguém pula de viadutos
na ursa maior brilha
o céu profundo do hemisfério
em que transito
e a palavra pendura no varal
pontos de luz
dedos entre cabelos revelam
minha compreensão
da existência sublime e finita.
TROTAMUNDOS
inevitavelmente passamos
de um lugar a outro
o resto das coisas ditas:
imaginação e cuspe
fúria e abandono
se misturam atrás da língua
(às vezes, muda)
poesia que defende
ditadura
dura?
os bichos continuam
em busca da floresta.
LINHA TORTA
era o beco estendido
de ponta a ponta no horizonte
atrás e na frente
de qualquer paisagem
que se queira contemplar
num passeio com propósito
minimamente lírico
eu vi as desimportâncias
de manuel
e meu coração doeu
porque nada mais resta
em matéria poética
que seja usado para sorrir.
PELÍCULA
a ilusão cinematográfica
ferra com minha imaginação
ponho um pé depois do outro
e vejo teu olho no meio
de um coração pegando fogo
corta pra outra cena
fade in não causa impacto
sigo no expresso oriente
e o artista com a cabeça
fora do trem
desenha a paisagem
fade out
teto e parede ausentes
o sereno esfria
o corpo incendiado
the end.
DESTINO
um homem aparece à porta
uma mulher caminha
ao redor da imaginação
corre um rio
parecido com a rua
exatamente ao meio-dia:
nenhuma sombra de dúvida.
março, 2021
Adriana Gama de Araújo [São Luís/MA]. Poeta, editora e historiadora. Mestre em História pela UFRN. Professora da Rede Pública Estadual e Municipal. Vencedora, em 2017, do III Festival Poeme-se de Poesia Falada. Publicou, em 2018, pela Editora Penalux, seu primeiro livro de poesia, Mural de Nuvens para Dias de Chuva. Publicou, em 2019, seu mais recente livro de poemas, TRaNSiTo, pela Olho D'água Edições. Participou da antologia Babaçu Lâmina — 39 poemas (org. Carvalho Junior, 2019). Tem poemas publicados na Variações — Revista de Literatura Contemporânea, Revista Revestrés, Mallarmargens — Revista de poesia e arte contemporânea e Revista Caliban, todas em formato digital.
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