encruzilhada binária
mais que um canto, um agô, pode chamar de exórdio.
apenas pra você, que não sabe o que é
que significa ser desde os tempos primórdios
se alevanta pra Exu meu canto Laroyê
peço licença aqui: nem ode nem o ódio,
apenas vou cantar, é só, e o que vier,
que venha desatar a todos os nós górdios
o ebó de zero e um em pas de deux: padê.
mil&tânatos
quero poder cantar impunemente
sem ter de agradecer por estar vivo
ou problematizar por que se sente
medo de ter tesão, tédio, convívio
onde estão meus amigos, minha gente,
mortos por mil & tânatos motivos
ou quase vivos quando assim de frente
qual das verdades que nos traz alívio?
não ter respostas pode ser apenas
o início de uma certa indignação
mal disfarçada e em doses pequenas
na militante estética do não
se apresentar nem pra salvar o mundo
nem pra trazer à tona o que, no fundo
poemot!com
você pode, e com razão,
ver que me faltam boas ideias
e que tendo a apelar pros grafismos
como forma de expressão
que faltam sinais de pontuação
imagens com algum sentido
refletindo um trabalho sério com a linguagem e
fingindo algum rigor obstinado
na precariedade travestida de escansão
que me faltem caracteres
mas que nunca me falte caráter
e nunca me quebre a guia
o guia dos meus ouvidos
o rufo tosco e bem batido
deste pobre
coração
[poemas do livro trans formas são. Salvador: organismo, 2018]
astrolábio de 7 faces
I
narro o erro. deambulo pela cidade, fazendo botânica no asfalto. as palavras me guiam porque não sei ler mapas. sou todo olvidos. ciclovio para o talvez último abraço em mainha e olho tudo ao redor sem me perder na batida oca do peito. atravesso, do centro a itapagipe, uma ítaca de onde não vim. pratico ordinariamente a cidade: sou um homem preto, gay e lento. salvador ora me estranha, ora é minha.
IV
se seu sonho é ser, não pense. é proibida a permanência de pessoas dentro da área de manobra. se escavar é viver, não encostar. inicie-se no vício em poesia: dou o melhor de mim. evite o proibido, o verbo: perigo! para cada demais horas, mais incertezas chegando: risco de atropelamento. desvio à esquerda: fúria. quem não mente, está amargo. eu descanso o verbo, sendo, e faço tipos eclústicos.
V
deriva incessante nos muitos modos de ser-estar neste espaço-tempo. coletar imagens e áudios de palavras, frases, ruídos sonoros e imagéticos. apropriar-se deles para escrever-performar na arte-vida. copiar, cortar e colar os cacos espalhados de uma cidade em forma de pixels. só a errantologia nos une. socialmente, economicamente e filosoficamente. "nada que se aproxima / nada me é estranho".
o albatroz brasileiro1
para Paquito
um albatroz-de-sobrancelha-negra é o mais
brasileiro albatroz porque é tão malandro,
a ponto de ganhar a alcunha por meandros
tais, que coloca em xeque se irracionais
são eles ou se somos nós. senão, vejamos:
ele plana o litoral de Sul ao Sudeste,
mas jamais pousa no solo do Brasil, este}
belo animal alado e baudelairiano.
talvez por precaução à fama de trollagem
que dão aos brasileiros em outras paisagens,
o pássaro sambou na rixa com a Argentina.
ganhou fama de ser o Albatroz do Brasil
de onde só se vê riscando o céu de anil,
mas só relaxa e pousa nas Ilhas Malvinas.
1 http://glo.bo/37W9er7
§
não há mal
nenhum em desejar
o mal a quem
mal desejou
e o já realizou
o mal a quem
se mal lhe fez
foi tão somente
o de encarnar o mal
não por ser mal
nem por fazer mal a ninguém
exceto àquele mal fazer por ser ninguém
mal sabendo este o que o mal é
[poemas do livro no meu corpo o canto: #experimentos com letras urbanas. Salvador: Tanto, 2020]
QU4DR1LHA
João marcava Teresa que enviava a Raimundo
num direct pra Maria que zapeava Joaquim que tuitava pra Lili
que não dava match com ninguém.
Raimundo foi cancelado, Maria compartilha fake news,
Joaquim e Lili estão em isolamento social,
marcando nas publicações e enviando pro zap de J. Pinto Fernandes
que não tinha visualizado o Stories.
mendiga trans
para Sabrina
apesar de tudo,
sorria muito
e até cantava.
desde que lhe furaram um olho
numa noite em que dormia
sonhando que dublava Maria Callas,
sorri menos.
mas deu a volta por cima:
casou-se com outro mendigo,
mais jovem e bonito,
e vivem no Campo Grande,
um cuidando do outro.
para comemorar as bodas de papelão,
deu luzes no cabelo
e arrasou.
daqui da torre
vendo tudo daqui, da torre,
me parece um tanto agoniado
sair por aí, se esbarrando
em gente que não tem mesura
do abismo em que todos estamos
isso posto, devo dizer,
evidentemente nos casos,
o meu e o seu, em que podemos
viver e ver de nossas torres
que se estamos encastelados
não é numa turris eburnea
indiferentes aos fatos,
é como assim dizer: vertigem
que mesmo estando bem do alto
saber bem muito bem ao chão
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mais uma vez o sol apareceu.
eu, que nasci às dez horas da noite,
sei bem de tatear e atravessar o túnel
até chegar a luz que me anuncia,
em forma de cegueira temporária,
que logo outro túnel há de vir,
vivendo neste eterno entra-e-sai
do mito da caverna redivivo.
se eu fico dando voltas, é que a vida
é feita de volutas pros que ficam
com as vistas treinadas pra enxergá-las:
não só os ornamentos sob a luz,
como também as espirais que indicam
que estar vivo é poder sempre perder-se
[poemas do livro assim na terra como no selfie. Salvador: Paralelo 13S, 2021]
junho, 2021
Alex Simões é poeta e performer. "a cappella de Waly" e "você tem seda?" estão entre as performances que realiza. Lançou, recentemente, os livros no meu corpo o canto:#experimentoscomletrasurbanas, em coautoria com o coletivo Tanto, e assim na terra como no selfie (Paralelo 13S). Tem um blogue: too bit or not too bit.
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