Fome é tema de ensaio fotográfico
com ossos à venda em bandejas
come osso menina
come osso menino
não há mais metafísica no mundo
do que comer osso
no açougue ou no mercado
osso de graça já foi dado
hoje é vendido hoje é comprado
come osso maria
come osso mané
come osso joão
com arroz e feijão quebrado
porque nesse país sem nome
temos que comer osso
para matar a nossa fome
§
já podeis
da pátria, filho
ver demente
a mãe gentil
já raiou
a liberdade
em cada cano de fuzil
salve lindo
fuzil que balança
entre as pernas
a(r)madas da paz
a gripezinha
era a certeza esperança
de um genocida
imbecil incapaz
§
A vida
sempre em suspense
alegria prova dos nove
fanatismo não me convence
muito menos me comove
Navegar é preciso
Para Fernando Aguiar
Aqui
redes em pânico
pescam esqueletos no mar
esquadras descobrimento
espinhas de peixe convento
cabrálias esperas relento
escamas secas no prato
e um cheiro podre no AR
caranguejos explodem
mangues em pólvora
é surreal a nossa realidade
tubarões famintos devoram cadáveres
em nossa sala de jantar
como levar o barco
em meio a essa tempestade
navegar é preciso
mas está dificilíssimo navegar
Deus não joga dados
mas a gente lança
sem nem mesmo saber
se alcança
o número que se quer
mas como me disse mallarmè
:
— vida não é lance de dedos
A vida é lança de dardos
Deus não arde no fogo
mas eu ardo
poema a(r)mado
todos os dias
capino a esperança
escavando outras palavras
no chão desse quintal
e quando escrevo com enxada
o poema é mais real
cacomanga
na roça desde cedo comecei a escavar
palavras e separar uma das outras de
acordo com o seu significado dar farelo de
milho para os porcos e olhadura de cana
para o gado aprendi que no terreiro não
dependo de mercado e para que urbanidade
se a cidade não tem paz com a enxada
capinei a liberdade e descobri que ditadura
é uma palavra que não cabe nunca mais
testamento
a tesoura rasga o tecido da carne
enquanto sangra
no processo cirúrgico do poema
corta de cada palavra a sílaba
que não presta
de cada frase a palavra
de cada sílaba a letra morfa
e o poeta vai vivendo no que resta
fulinaíma sax blues poesia
ela era Bruna
em noite de blues rasgado
soltou a voz feito Joplin
num canto desesperado
por ser primeiro de abril
aquele dia marcado
a voz rasgou a garganta
da santa loucura santa
com tanta força no canto
que até hoje me lembro
daquela musa na sala
com tua boca do inferno
beijando meus dentes na fala
Nota do autor: Esse poema foi escrito em noite de Fulinaíma Sax Blues Poesia, no dia 1º de abril de 2015 — 50 anos do Golpe Militar de 1964, performance realizada no Bar e Restaurante Dona Baronesa, em Campos dos Goytacazes/RJ, com Artur Gomes, Reubes Pess, Dalton Freire e Bruna Tinoco.
pan(demônica)
Para Salgado Maranhão
inspirado em seu poema Pá
passeio os pés descalços
sobre covas rasas
contando ossos no poema exposto
no sujeito do objeto
tudo isso exposto
nesse papo reto
segue o passo norte
não leio cartas de suicídio
nem decreto de hospício
na tentação que me conforte
quero matar o genocídio
pra não morrer antes da morte
metáfora
meta dentro meta fora
que a meta desse trem agora
é seta nesse tempo duro
meta palavra reta
para abrir qualquer trincheira
na carne seca do futuro
meta dentro dessa meta
a chama da lamparina
com facho de fogo na retina
pra clarear o fosso escuro
Indigesta
ê fome negra incessante
febre voraz gigante
ê terra de tanta cruz
onde se deu 1ª missa
índio rima com carniça
no pasto pros urubus
oh! My Brazyl
ainda em alto mar
Cabral quando te viu
foi logo gritando:
— Terra à vista!
e de bandeja te entregando
pra união democrática ruralista.
por aqui nem só beleza
nesses dias de paupéria
nação de tanta riqueza
país de tanta miséria
[Poemas para a segunda edição ampliada do livro Pátria A(r)mada. Desconcertos, 2019]
dezembro, 2021
Artur Gomes é poeta, ator, videomaker e produtor cultural. Tem diversos livros publicados, sendo os mais recentes SagaraNAgens Fulinaímicas (Edições Du Bolso, 2015), Juras Secretas (Penalux, 2018) O Poeta Enquanto Coisa (Penalux, 2020 ) e Pátria A(r)mada (Desconcertos, 2019, Prêmio Oswald de Andrade, UBE-Rio, 2020). Inédito: O Homem Com A Flor Na Boca e Da Nascente A Foz : Um Rio De Palavras (livro de memórias). Dirigiu a Oficina de Artes Cênicas do Instituto Federal Fluminense em Campos dos Goytacazes/RJ, de 1975 a 2002. Em 1983, criou o projeto Mostra Visual de Poesia Brasileira e, em 1993, idealizou o projeto Mostra Visual de Poesia Brasileira Mário de Andrade — 100 Anos — realizada pelo SESC São Paulo. Em 1995, criou o Projeto Retalhos Imortais do SerAfim — Oswald de Andrade Nada Sabia de Mim, executado pelo SESC-SP em várias unidades na capital e pelo Estado. Em 1999 criou o FestCampos de Poesia Falada, realizado até 2019 pela Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima, em Campos dos Goytacazes/RJ. Em 2002 lançou o CD Fulinaíma Sax Blues Poesia , com seus parceiros Dalton Freire, Luiz Ribeiro, Naiman e Reubes Pess. Em 2021 lançou dois e-books — Poesia Para Todas As Horas e O Homem Com A Flor Na Boca ou O Poeta Enquanto Coisa. Desde 2007 produz performances poéticas com videopoemas. Em 2021 fez curadoria para a Mostra Cine e Vídeo De Poesia Falada. realizada pelo SESC Piracicaba/SP. Mantém na sua página Studio Fulinaíma de Produção Audiovisual, no Facebook, o Festival Cine Vídeo de Poesia Falada. Com seu videopoema Goytacá Boy, é um dos poetas que integram a Mostra Virtual de Videopoemas do Projeto Bossa Criativa, Arte de Toda Gente, realizado pela FUNRTE Rio. Em 2021 integrou a Comissão Julgadora do Festival Cine Urutu, realizado pela Prefeitura de Pindamonhangaba/SP e fez curadoria para o Festival Ecos — Videopoemas, realizado pelo Instituto Federal Fluminense.
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