NA PRIMEIRA PESSOA
Acredito cada vez mais na energia vital
Resisto cada vez menos à carne de bode
Ainda percorro, dia sim dia não,
A Avenida Maria Moreira Lisboa
É minha via-crúcis predileta
A Rua Nova Esperança ficou para trás
Apenas geograficamente
Seu filho ilustre tomou chá de sumiço
Uns goles de café Ticiana!
Quantas vezes perdi o ônibus e, no sufoco,
Dei mil voltas pra fugir dos credores
Ou perseguir Manezim do Gavião?
Quantas vezes acordei de noite
Repetindo sem saber Goethe: "Mehr Licht"?
Quantas piabas engoli pra ficar
Igual a Bita e desafiar o perau
O redemoinho o saci-pererê?
Quantos mergulhos para compreender
O milagre das pedras ocas?
A moral do cu da cobra, meu rei?
O bem tem mil e uma utilidades?
Não perdi a cabeça porque conheço
Bem o caminho de casa
Mas já pus o carro na frente dos bois
E, quer saber, foi muito emocionante.
NASCER
Nasce-se quantas vezes nesta vida?
Tantos nasceres quantos morreres?
Nasce-se antes para morrer depois?
Morre-se durante renasce-se doravante?
Nascido sábio e morto abestalhado?
A cada agosto rejuvenescido tal qual
Benjamin Button? Parabéns pra mim!
SWEET ITANHÉM
Não quero nada de ti, embora seja teu filho,
Não exijo nem um pingo de compreensão,
Embora louco de amor por ti, não desejo
Tampouco que dediques duas linhas à minha
Memória, embora conhecedor das tuas veredas
E más intenções
Não suplico sequer uma gota do teu doce
Leite, a despeito da minha enorme sede,
Só não abro mão da condição de crítico
Teu: porque contei todas as tuas pedras ocas!
PERDI A CONTA
Das vezes (ai de mim) em que
Queimei a língua
Com chá quente
Os heróis eram movidos
A feijão com arroz
Coragem e saudade
As ervas daninhas:
Pipocas coloridas que
Brotavam da terra
As modinhas de viola
Os causos delirantes
(En)cantados por seu Manuel
O peixe era voador
Ou de preferência frito
Mãe Lua caprichava no sal
Dos domingos em que
Praticávamos o abraço
Tamanho família.
COISAS DA ROÇA
A pinga dos São Leão é coisa fina
Made in Curvelo da Conceição!
Os galos de Ibirajá fazem barba
E bigode com jeitinho capixaba.
Os gaturamos da Vila Resende
Enjoaram de alpiste e
Protestam com o bico em riste.
As pedras preciosas do Salomão
Se fingem de mortas mas, no fundo,
São fugidias de noite e de dia
Na feira livre de Batinga os
Índios cruzam a ponte do Umburaninha
Trôpegos de caninha da roça.
A vaquinha do Mutum é capital:
Dá o leite e, depois, vende o
Queijo no mercado municipal.
As galinhas-d'angola dos Motas
Põem ovos como ninguém,
E reclamam da vida que têm!
São José vila santa da pedra oca
Do capim pubo e do mel amargo!
MAKE FACES TO ME
Que posso lhe oferecer que reúna
visgo e ânimo?
Como já possui a dor, segue a raiz,
o tronco e o fruto
A raiz para fixar amizade e nuvens
vagabundas
O tronco para amarrar promessas
de amor bravias
O fruto para matar fome de voo e
sede de riacho
(Agora faça cara de paisagem para
mim comigo!)
À MEMÓRIA DOS PLANTADORES DE VACA
Vocês foram tudo na vida:
Capim, café e cumpadis
Vocês são nada, nadinha
Na outra vida, agora, nuvem
Vocês formavam a mais
Bela e bostal fila indiana
Agora, ficam suspensos
No boitempo, bem feito!
Pouparam e venderam
A alma ao Bezerro de Ouro
E, no fim, saíram no lucro:
A eternidade bovina
Vocês plantaram vacas e
Colheram leite e deleite
Um pedido formal meu:
Mandem notícias frescas
Uma curiosidade secreta:
Metano cheira à merda?
Uma indiscrição minha:
Vão plantar vaquinhas!
BATISTAS
Não perdem uma briga e
Passam fácil pelo buraco da agulha
Politicar é a especialidade
Número um dos Batistas
Conversa pra boi dormir
Definitivamente não é com eles
São gente como a gente:
Têm medinho do escuro
Os Batistas são solenes e —
Muito — desconfiadinhos
Não dão a mínima pro meu
Sentimentalismo barato
Previsíveis, nunca vão dizer
Por aí: Viva Água Preta!
Os Batistas serão pau pra
Toda obra até a 3ª geração
Depois vão virar nostalgia
Ou anedota cabisbaixa
BOSTARE
Quem veio ao mundo primeiro:
Os humanos ou os bovinos?
Estrearam no mesmo dia e hora!
Ambos berram, praticam a bondade
E a maldade e se fingem de mortos,
Quando lhes é conveniente!
Na hora h, desejam não ter nascido!
E nem adianta chamá-los de bestas,
Que não levam desaforo para casa.
É a lei da reciprocidade: cagada certa!
A grande invenção deles é o curral
Onde, em momentos solenes, se
Reúnem para tirar à sorte e fotos
Ou simplesmente perder o latim...
Uns preferem se borrar a assimilar
A tal perda do latim, que não lhes
Entra fácil no frágil entendimento,
Talvez porque sempre o possuíram...
— Entendimento?
— Latim!
AGUAPRETICES
Vaivém sem propósito
mas necessário
escada de Jacó
estrada de Batinga
degrau de algodão-doce
ou madeira de lei
o vão (entre os degraus 100 e 101)
foi censurado
que tal um pouco de juízo para
ligar norte e sul?
longarina é via de mão dupla?
*
Estou irreconhecível
como um 2 que mudou de lado
não sei se me escondo sob a mesa
ou se espio da estante empoeirada
cada vez mais, clamo pelo meu
pa(i)piro!
*
O problema não é ter de contar esses botões,
um por um,
sistematicamente...
o duro é ter de aturar
— isso não é ciência! —
o tititi dessas manufaturinhas sob medida!
*
O que seria de Pascal
sem o silêncio?
o que seria do silêncio
sem o ouro
os óculos
os pingos nos ii?
*
Quem é mais sentimental:
o pingo de chuva
ou o fio-dental?
[Poemas do livro Água Preta]
junho, 2021
Almir Zarfeg — também conhecido como A. Zarfeg ou simplesmente AZ — é um poeta e jornalista baiano radicado em Teixeira de Freitas/BA. Publicou mais de vinte livros envolvendo os mais diversos gêneros textuais: poemas, crônicas, contos, novela, infantojuvenil e reportagem. Participa de inúmeras instituições literárias e culturais dentro e fora do país. É membro, por exemplo, do Núcleo de Letras e Artes de Lisboa, da União Brasileira de Escritores (UBE-RJ) e da Academia Teixeirense de Letras (que presidiu entre 2016/2020). Em 2017, foi homenageado pela União Baiana de Escritores (UBESC) com o título de "Personalidade de Importância Cultural". Em 2018, recebeu o "Primeiro Prêmio Absoluto" pela obra poética inédita A Nuvem, concedido pela Accademia Internazionale Il Convivio. Em 2019, foi convidado para organizar o livro de poemas Nós — poesias para tardes ensolaradas, lançado durante a XIX Bienal Internacional do Livro do Rio. Em 2021, o artista celebra 30 anos de trajetória poética iniciada com o livro de estreia Água Preta, de 1991, que terá a 5ª edição publicada pela Lura Editorial.
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