Morte
é essa navalha da sorte
(sem espada de São Jorge)
o mais incicatrizável corte
em quem não morre
é a culpa do mais forte
é o lorde de sangue porte
é a tripa que o vácuo torce
e nunca se contorce por si só
Barricada
Do amor entulhei cada centímetro do fogo
cataloguei os arrepios bestiais
e a saliva escorre em vultos.
Mas agora as portas estão fechadas.
Com meu velotrol limpo o invisível entre os tacos
e os raios do sol asteca querem ser honrados
(esse sol também tão solitário).
Com medo, me lembro do poeta:
"Da vida não se sai pela porta:
só pela janela".
E ela está escancarada.
Os galos continuam tecendo a manhã
a criança pinta os pés
da galinha de esmalte
miúdos na bacia
de alumínio da mãe
o pai fala para o filho
que vai quebrar seu pescoço
se ele entrar no mar de novo
a criança quebra o pescoço da Barbie
a mãe fala que
não vai comprar outra
a mãe e a filha com as unhas pintadas
Os poetas não deixam em paz:
o mar
a galinha
as crianças
os pais
hoje, parece que os
galos cantaram menos.
Depois da vacina
cortar as unhas afiadas
para escalar o poço da sarjeta
reconstituir todas as cabeças
oferecidas de bandeja
grudar os umbigos
no resto de placenta do planeta
destruir todos os espantalhos
esses que fingem ser humanos
não deixar atalho algum
de como voltar a este ano
carregar os ossos deslocados
de todos os antepassados
colar as partes em laços
nadar com os sargaços
fazer deles nossos braços
veias e passos
Aí, sim, encostar
as palmas das mãos
no rosto de Deus
e voltar como um raio
apenas um raio
mas não sozinha
viva pela primeira vez.
Observar mais os animais
O sabiá prevê tempestades
em outros continentes
você vê minhas lágrimas
do banheiro
e diz que o furacão
sou eu
Ostra aberta
seus lábios gomos
mais de uma pérola
beijo de fome
língua de falo
fala sem auréola
Tagarelice
Disseram que o ignorante é mais feliz
Disseram que comer antes de dormir dá pesadelos
Disseram que ser ignorante gera uma nação infeliz
Disseram que não comer é pesadelo
Disseram que quem diz muito não faz
Disseram que quem faz muito não tem tempo
Disseram que a voz do povo é a voz de Deus
Disseram que o povo não tem voz
Disseram que não há um Deus.
IRCH!!!!!!
eu perco a ponta do durex
é como se eu perdesse a ponta da vida
aí eu perco o durex de novo
depois tudo gruda e vai embora num segundo
emaranhado de nós, como a vida
eu sei é só o durex
é tão simples
como você não acha a ponta?
ou eu sei, é só a vida
e não consigo parar de pensar num road movie
enquanto não encontro a ponta do durex
látex látex látex
a vida fica espremida
(dentro de um molho de látex)
aí penso na camisinha
o bolo que eu faço de durex me irrita
relaxo ao ver um tatu bolinha no jardim
bom saber:
há muitas receitas para bolos na internet.
Aula de anatomia para certas meninas
as meninas de outra época
colecionavam e trocavam papéis de carta
os de seda — os mais valiosos — amassavam
não eram espichados como o tergal das saias
na ponta dos dedos toques sutis:
nervos fibras músculos e enredos
como uma descoberta num mapa
cada desenho uma labareda
a eterna promessa do completo
o papel de carta insinuava
o que não seria estudado na escola:
tesouros de piratas de seus corpos
marés encharcadas de águas-vivas
a ponta da pirâmide, esfinge
o cheiro dos papéis de carta:
orquídeas de Madagáscar
plantas carnívoras
coberta descoberta
lençol não trocado
árvores frutíferas
os envelopes das cartas
ficavam quase abertos
asas de libélulas
retirados em dedos ébrios
com luvas de cetim
de cartolas mágicas
já ouvi falar que as meninas
ardiam seus papéis de carta
em ferros a vapor
sem nenhum rubor
não aprendiam com as mães
mas com as mãos
os papéis importados
forasteiros
abriam-se
como figos na imaginação
um livro pagão
se em blocos
as meninas molhavam
a ponta dos dedos
e desfolhavam
um a um
alguns papéis de carta
se esfregavam dentro
das pastas
assim como as pernas
das meninas ao comprimir
seus travesseiros
tão bem lavados pelas mães
as mãos os dedos
eram cúmplices
assim como
as pernas penas
sem tinta sem álibis
as meninas não falavam
dos seus dedos no recreio
merendeira lacrada:
maçã, bolacha recheada
os meninos preferiam
medir coisas no banheiro
meninas
de matemática não eram certeiras
de vasos sanguíneos mais festeiras
pequenos montes de eclosão
meninas e seus dedos
os meninos jogavam tapão
as meninas não trocam mais papéis de carta
algumas ainda guardam suas pastas
tocam-nos como tecido de alfaiataria rara
e sentem o cheiro de notas
das primeiras alforrias
Semiótica e semideuses
eu queria subir em um tsuru
olhar bem antes
para o seu dégradé de cores
e rir da sua longevidade jovem de mil anos
é um pesar ser tão eterno
(triste ou feliz) sem descanso
sem desmame do tempo
eu queria ir do Japão para a China
no seu grou amarelo poeta Calixto
destruir e reconstruir a Torre
sete vezes numa bebedeira cabalística
e trocar as cores das cerejeiras
pelas cores dos pessegueiros
mas não posso: eles também
têm vida longa e próspera
eu queria ter o corpo do Sísifo
as minhas pedras têm o mesmo peso
e rolam do topo todos os dias
se não for pedir muito
ter menos ouvido para escutar
as senhoras disputando
a eternidade antes da missa
(os suicídios estão mais sinceros
que as revoltas)
gostaria de sacolejar bandeiras
todas as cores
e já agora
a maioria cor sangue
mas acho que as pessoas
deveriam enxergar
como os cachorros
espectros azuis ou laranjas
— elas estão bem bipolares
não merecem as cores
cansada: quero
trançar meu cabelo
asilar este momento
e despertar amanhã
menos sóbria e sombria
ver sombra de árvores
no espelho dos meus olhos
e no colo da vida
ser flor das benzedeiras
Empatia mórbida
tenho a cabeça de alfinete
de uma abelha num repente
ao tentar cruzar
a porta translúcida
no poente de vidro
no chão
se acaba
tenho a cabeça espatifada
de um homem numa caraça
ao tentar puxar o ar puro
em caça à procura
com medo desse ar tão largo
e que na cama se acaba
somos parecidos
queremos trocar
no mais abissal
submarinos
venenos
ferrões
no pranayama
das abelhas
morremos e nascemos
quatro relógios por dia
na arquitetura das abelhas
morremos e nascemos
quatro relógios por dia
e andam varrendo todos os mortos
sem olharem para suas asas
Perto
No cafundó da minha alma
onde libélulas bicolores
se cumprimentam
mora a certeza de que a razão
atrapalha a beleza do infinito.
A falta de protocolo dos sentidos
eu assino com incenso.
Na razão, conheço o fundo das minhas rugas
os calos sem lógica dos pensamentos.
Nos sentimentos,
a idade é um eterno cochilo de menina
depois de brincar de bonecas
farta de estações de deslumbramento.
No cafundó da minha alma
onde peitos enormes
me amamentam
mora o meu maior rebento:
a habilidade da loucura
sem julgamentos.
Besta
Quando um homem bate em uma mulher
o corpo bicho dela senta
no canto do labirinto
do cérebro e se contorce
com o manto
de dez a quinze minotauros
Quando um homem bate em uma mulher
o olho dela vai pro canto
e tem a cor de azeitona
já mordida e com caroço
Quando um homem bate em uma mulher
todos os marimbondos do tórax
saem pela sua boca
mas ninguém vê
Quando um homem bate em uma mulher
o corpo dela depena
e seu sangue ferve
numa bacia de prata
(os pedaços são dados aos cães
como se eles entendessem
o barulho minguado
da lua de suas tripas)
Quando um homem bate em uma mulher
ele sempre tem forma
de pino ou garrafa
e ela desfigurada
Quando o homem bate em uma mulher
ela sabe que jamais poderia ser um homem
Passarinhos
cinco e trinta e cinco
os ponteiros
voam pássaros
hora dos reis
sultões imperadores
sacerdotisas rainhas
monarcas presidentes
duquesas atravessarem
o céu denso
o portal da aldeia
da coreografia
sem ensaio
passarinhos são xeiques
xamãs aiatolás deuses deusas
o João de barro não é só um joão
sem reino eira e beira
passarinho é um diminutivo
palavra grande sem título
o diminutivo deixa as palavras
mais bonitas
os títulos são só títulos
que os passarinhos não têm.
É mais leve voar assim.
[Do livro Ando caindo cada vez mais leve. Penalux, 2021]
dezembro, 2021
Carla Andrade é mineira e brasiliense, mas gostaria de ser do fundo do mar. Publicou Ando caindo cada vez mais leve (Penalux, 2021), Caligrafia das nuvens (Patuá, 2017), Voltagem (7Letras, 2015), Artesanato de perguntas (7Letras, 2013) e Conjugação de pingos de chuva (LGE, 2007.) Alguns de seus poemas foram traduzidos para o italiano, espanhol e inglês. É jornalista e servidora pública.
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