BARREIRO
O tempo e suas floradas
na voz vibrante de minha avó
saudando a passagem suave,
quase inaudível,
de uma chuva do caju.
CANTO ESCURO
A malinha de Lúcia Beré
decorada com recortes de artista
( colados com goma e água de chuva )
esconderijo de roupas sujas,
( meio molhadas, meio caladas ),
arco-íris de farrapos.
O COCHILO
O carregador de água
desenha passos leves
no coração da tarde,
( atravessa o canto
das pipiras na goiabeira )
compasso nos pés,
penetra a sombra
de uma mangueira.
NAUFRÁGIO
Peitoris
entre nuvens de chaleira,
( passos
lentos
por
dentro ),
temporal
nos calcanhares da manhã.
O SEGREDO DOS BOGARINS
Das flores aprendi
bogarins e chananas,
pesada bagagem
para atravessar a rua.
CAATINGA
oh, seca enviesada,
não põe os teus vapores
quentes nessa árvore
carregada de orvalho
(pequenas gotas,
pequenos signos
que não ameaçam
a hegemonia da fome)
espalhando pelo chão
o cheiro de um inverno
que nunca chega
mas que está a caminho
SÃO DELICADOS, OS PESINHOS?
Em noites de vento forte
como se equilibram os passarinhos
nos galhos das árvores?
Como eles dormem
e permanecem equilibrados
com os seus pesinhos?
E depois de mortos
quem faz o cortejo fúnebre?
Quem os enterra entre flores?
Quem acomoda as suas asas
na sepultura do jardim azul?
LOUCURA
Árvore podada, compacta
sem brechas de luz
na sua sombra no asfalto.
Uma circunferência escura,
uma pausa na claridade
da manhã
Seu caule rústico
ligeiramente inclinado
sustenta a farsa do dia
em direção ao muro
pintado de cal
e alto impedindo a fuga
CHICO TREIN
Sou limpo,
sem heranças torpes,
cheiro à flor,
sem mortos no cachaço
( carrego peso
da mais-valia
no meu velho
saco de estopa )
Me veste bem
a roupa de inocente,
a chuva brilha
na minha sombra de mendigo
O CAMINHO
A minha prisão é sem grades,
um grande vazio me envolve.
O espelho reflete a minha dor
e a sua visibilidade brilha no ar
me cegando.
Tateio metáforas nas superfícies
à minha volta
e queimo as minhas mãos.
A cegueira anda entre flores
e o aroma guia
o meu corpo cansado
até alcançar a fonte borbulhando
doa anéis de água pura
CLARIVIDÊNCIA
Os pés de cajus dormem
sob um sol escaldante
que ferve o doce
de suas entranhas.
Labirinto de carne macia
e de sabor açucarado
por dentro de si
sem encontrar saída.
A sonolência da fruta
é pausa para o aprendizado
do vegetal em curso.
O que sabemos mais
desse monte de carne madura?
A noite esfria a polpa
e o suco trilha
um caminho de volta
à fonte escura
MANELÃO
Em noites de chuva
ele dormia sentado,
espremido contra a porta
do antigo cartório
e ainda assim molhava
os seus pés grandes.
E se o vento fosse mais forte
molhava-se todo e chorava
sem que ninguém visse.
De madrugada, sozinho,
ele chorava mais e pedia a Deus
que o levasse para um lugar
mais sequinho
onde ele pudesse dormir em paz
dezembro, 2021
Carmen Gonzalez nasceu em 1965, em Barras do Maratoã, no Piauí. Atualmente reside em Santo André/SP. É bacharel em Direito, pela UFPI. Possui poemas publicados na revista PULSAR (Teresina, 2001), e nas antologias Saciedade dos Poetas Vivos (Volumes II e III, Rio de Janeiro: Blocos, 1992/1994), e Baião de Todos (Teresina/PI: Corisco, 2007).
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