Em pequenos grupos de dois, a junta evangélica foi adentrando os pavilhões, distribuindo-se entre as celas onde estavam isolados os presos afastados dos demais, isto é, "a escória da escória". Ia animada em fé, pela experiência nos demais pavilhões.
Contra qualquer expectativa, dona Ana integrava aquele grupo. Ia ela com a irmã Rute, e adentrou aleatoriamente uma cela (a 7; Rute, a cela 8).
Imersa em pensamentos sobre aquele estranho chamado, enorme desafio, foi tirada de seu estado por uma voz debochada:
— "Jesus é a saída"... Camisa loca essa, "irmã"! A saída é o que eu tô na febre pra conseguir...
Ana paralisou. Sentiu uma pontada no coração, que depois disparou. O detento notou isso.
— Tá abalada, "irmã"? Não vou te morder não. E mesmo que quisesse, os verme não deixa a gente só. Olhaí, tá vindo um.
Um agente penitenciário entrou e ficou na porta.
— E então, dona? Criou raiz aí?
Até aquele momento, dona Ana manteve-se de olhos fechados, orando fervorosamente. Não estava pronta para aquilo. Por Deus, qual a razão? Ao ouvir a última frase do detento, adiantou-se hesitante e sentou adiante dele.
— Bo... boa tarde. Me chamo Ana.
— Vô chamar de "irmãzinha".
— Como quiser. Como devo chamar voc...
— O que você quer, "irmãzinha"?
— Vim aqui... em nome de Jesus para... para transmitir o evangelho do Senhor, esse evangelho que... que deu significado à minha vida, pois como está escrito em Matheus 11:28, "Venham a mim, todos os que estão cansados e oprimidos, e eu lhes aliviarei".
— Cê acredita em Deus, irmãzinha?
— Sim.
— O que faz Deus enquanto tanta desgraça acontece no mundo?
— Você conhece Jesus?... O filho de Deus veio à Terra e deu sua vida preciosa, para que com seu sangue puro lavasse todos os pecados que...
— Te fiz uma pergunta. Responda! Onde está Deus?
— Está em todos os lugares... mesmo aqui, agora. A bíblia diz que...
— Me mostra Deus então.
— Como?
— Você ouviu. Eu vou acreditar se você me mostrar Deus.
— Eu... não posso fazer isso... A bíblia diz que...
— Não tô nem aí. Escuta, dona. Você entra aqui seguindo sua cartilha de pregadora, cada pergunta que eu faço ou você não responde, ou vem dando versículo em resposta...
— As respostas só são encontradas através da palavra...
— Dane-se! Você acha mesmo que se Deus existisse ia acontecer tanta merda no mundo?
— Ai, meu Senhor!... Olha, Deus não é responsável pelas coisas que acontecem, pelas... desgraças... Nós que as cometemos.
— Até que enfim tá saindo da cartilha, "irmãzinha"! Tá certo. Mas vamos dizer que você tem razão: por que ele fica de braços cruzados só vendo as merdas que a gente faz com os outros?
Dona Ana não respondeu, porque aquela pergunta era a mais cruel que aquele homem em especial poderia lhe fazer. Mas ainda viria mais...
— Por que Deus não evitou — e aqui, o detento abaixou bem a voz, inclinando a cabeça em direção à pregadora — que durante dois dias inteiros eu arrancasse sangue das pregas daquele menino de 11 anos que no final eu acabei estrangulando?
Dona Ana arregalou os olhos inundados de lágrimas, quase ao mesmo tempo em que levou a mão direita ao peito, como quem prestes a ter um infarto, encobrindo a boca com a outra, e se afastou com repulsa. O rosto risonho do detento parecia saborear aquela reação.
— E quer saber? Se o verme não tivesse aí — sussurrou — eu te derrubava na hora e te fazia um estrago, apesar de ser feinha...
O sofrimento e a humilhação foram enormes. O guarda não ouvira nada, sequer prestava a atenção. Permanecia encostado na parede, cutucando uma ferida no dedo, louco para que aquela "lenga-lenga" acabasse. Dona Ana ficou em choque, agora não conseguia desviar o olhar daquilo que já não considerava um homem.
— Acha ainda que mereço Deus, "irmãzinha"?
Um tumulto mental a tomou de repente. O que estava fazendo ali, justo ela? Em meio ao caos, algo ia se sobressaindo e a dominava: um ódio imensurável. Fechou o punho, cravando as unhas na palma da mão com violência. Abaixou o olhar perdido para o chão, lamentando-se mesmo de haver atendido o chamado. Qual seu sentido?
Súbito algo a chamou para dentro de si. Fechou os olhos, o corpo ainda tremendo e o punho fechado. Passaram-se alguns minutos de silêncio que o detento não violou, minutos em que a tremura de dona Ana foi aos poucos abrandando e sua mão generosamente ia se abrindo.
Abriu os olhos e encarou, com rosto inchado, mas serena, o detento no fundo dos olhos dele. Se tinha alguma dúvida, essa cessou quando viu uma sombra melancólica ali. Em paz, disse:
— Nenhum de nós merece Deus, mas através de um sangue inocente derramado a salvação tornou-se possível a todo aquele que crê. Não importa o erro, a misericórdia é maior, o amor é infinito. Você me desafiou a mostrar Deus e reclamou sobre eu "seguir a cartilha". Você tem razão. Pois bem: faz cinco anos que uma desgraça, a maior que pode sofrer uma mulher, me atingiu a ponto de eu me sentir morta. E tudo o que você questionou sobre Deus, irmão, não está muito longe do que eu mesmo fiz naquele instante. Mas ali mesmo Ele veio a mim, e me mostrou desde então, e principalmente através deste momento em que estou aqui com você, o caminho que determinou para minha vida...
Dona Ana levou suas mãos às do detento, juntando-as e, com a mão machucada, alisava-as, como quem busca limpá-las, mas em verdade sujando-as um pouco de sangue.
— Minha vida acabou há cinco anos, no córrego da Vila Jordão, mas ali também Deus me deu a vida...
Então o detento petrificou-se, impactado. Daí para frente não poderia dizer mais nada.
— Jesus me pediu para dizer que te ama, e eu também...
Dona Ana levantou-se serena. O oficial lhe deu passagem e ela partiu.
Passaram-se horas sem que o detento fizesse qualquer coisa, nem sequer um movimento. O olhar em espanto. Ele havia desafiado dona Ana, e no fim ela O mostrou a ele.
Data daquela noite o último dia daquele homem, o desejo de dona Ana.
dezembro, 2021
Clayton de Souza é escritor, autor dos livros Contos juvenistas (contos, 2013) e Versos de imprecação contra o mundo (poesia, 2018). É colaborador no jornal Rascunho e da Germina — Revista de Literatura & Arte, além de, eventualmente, em outros veículos literários.
Mais Clayton de Souza na Germina
> Contos
> Na Berlinda (Poemas)