a inconstância dos fluxos
uma porção de vida felina
dorme em minhas mãos
observo o vibrar da força
no corpo de 200 gramas
por um instante, penso
na poeira cósmica que nos cobre
do nascer do mundo ao algoritmo
de uma inteligência artificial
que planeja o nosso futuro
esse lapso que dura
uma eternidade de incertezas
oferece margens difíceis de saber
onde pôr os pés
qual melhor forma de plantar
para qual deus dar atenção
agora mesmo
uma performance pandêmica
sincroniza a atenção dos espectadores
no seu espetáculo mortífero
transforma nomes de família
em vazio numérico
em algum lugar do país
uma pessoa precisa encher os pulmões de ar
mas a atendente diz que está em falta
explica que é uma espécie de castigo
por maltratarem o planeta
volto para a pequena porção de vida
em minhas mãos
contemplo sua saúde
pelo rastro que deixa
pela vontade de comer de hora em hora
— uma infância se prepara para a inconstância dos fluxos.
reabitar 2
1
a esperança
desafia a gravidade
e levanta os mortos
reanima os segredos da casa
com o toque do invisível
perturbamos
os domínios da morte
com nossa felicidade.
2
o irromper da luz
e sua energia
intangível
magnetismo
que me faz
manter os olhos
no nascente
e imaginar um lugar
que deus
não conheça.
rotação dos vivos
os peixes
engolem o que os mortos
deixaram para trás
os caminhos
se abrem ante as lacunas
e o planeta
gira outra rotação
os cavalos
arrastam com a firmeza
de suas mandíbulas
a fé dos animais
— a força da natureza
vibra nos vivos.
musculatura cinética
os rios seguem um curso imaginário
em uma parte do corpo, as águas transbordam
em outra, elas se afogam
na margem do silêncio esférico
as árvores frutificam
uma espiritualidade indomável
reviro a linguagem
à procura de um amuleto
— palavras que alimentem a vida.
resisto com todas as manhas
— não tenho tempo para envelhecer.
a álgebra dos sentidos
entre árabes e latinos
combinar números, vocábulos
criar enigmas
sobre o mundo
dominar a mística
e a álgebra dos sentidos
projetar no lado de dentro
uma cidade
submersa na inconstância
dos códigos.
recanto
ergo um museu de silêncios
entre besouros cegos e esporões perdidos
em uma praça que fica no coração da memória.
aprendi que a verdade é um signo inflamável,
que os bares vendem ausências
e que as pessoas estão cheias de vazios.
meu recanto é uma varanda no hipotálamo
ateliê onde rumino um orfanato de cartas
e rabisco pequenos infinitos.
carrego sempre um peso a mais
um insólito equilíbrio, uma poética selvagem
para me defender do grito sanguíneo do tempo suicida
— escondo minhas relíquias no avesso da lâmpada
onde as palavras têm febre e a matéria se bifurca.
olhos no varal
a noite é interminável quando se apoia nos enfermos.
federico garcía lorca
as estrelas mudam de lugar
e os capricornianos perdem a firmeza do chão.
estendi os olhos no varal
após ter acordado de um incêndio em alto volume.
um pedaço da noite caiu do céu
e as formigas carregam para seus abrigos
fagulhas do cruzeiro do sul,
para iluminar os subterrâneos da cidade
com alguma esperança.
assumir o balanço como vetor de emoções
((((balançar, balançar, balançar))))
até jogar tudo para fora
até cair para longe de si
migrar do cardume dos degradados
transpor o cabo das tormentas
e remar num atlântico-azul-impreciso.
— se refazer em um novo arranjo de carbono,
na casa que confessou seus ruídos coloniais.
março, 2021
Demetrios Galvão nasceu e vive na cidade de Teresina/PI. É poeta, editor e professor. Autor dos livros de poemas Fractais Semióticos (2005), Insólito (2011), Bifurcações (2014), O Avesso da Lâmpada (2017), Reabitar (2019) e do objeto poético Capsular (2015). Em 2005 lançou o CD de poemas Um Pandemônio Léxico no Arquipélago Parabólico. Tem poemas publicados em diversas antologias e revistas literárias. É Coeditor da revista Acrobata, em atividade desde 2013.
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