Breviário de um trajeto rude
Os espinheiros que perfazem o caminho
exercem sobre o chão uma ameaça ressentida.
A natureza dessa ocupação fere de tanto seco desfolhado
todo aquele que toca ou mesmo vê distantes
os espinheiros que perfazem o caminho.
Palmilhando o terreno cercado de esporas,
quem se aventura nesse trecho, ouve ruídos
de pedra esfalecida e sabe também sua mesma míngua.
Já não recorda de onde vem, pois segue somente
palmilhando o terreno cercado de esporas.
Aqui a vida é toda um corte sobre o outro
e cada palmo do corpo é uma história que não vinga.
A pele se entrega ao galho, o chão se rende ao corte.
Um cenário de feridas secas grita a todo instante:
Aqui a vida é toda um corte sobre o outro.
Noturno
Houve uma noite.
Uma noite somente e através dela
toda vontade desse mau destino
arrastando sempre perda e ossos.
Apenas essa noite raríssima
suspendia os efeitos do fim
porque nenhum sinal,
nenhuma agitação.
Na primeira lua a conquistar o ar inteiro
dessa única noite entre dois séculos indefiníveis
um vestigiozinho de sol no céu possível
lembrava a sorte que há na luz dos olhos mortos.
Rumor de nuvem
De alto a baixo o vazio deita ausente no universo.
A imensidade bravia ganha, de vaga em vaga
(como um vento alvoroçado demolindo a vida),
o vasto vale onde a leve ideia da calma pasce.
Num estardalhaço apresentado aos astros, assustado,
o céu sem chama estampa a estranha cor castanha.
Cor igual à da lama que toma as fartas águas claras dos rios
quando o mesmo céu se desmonta e tomba sobre terra.
Então o espaço inteiro ronca destroçado na tormenta atordoada.
Agora a fúria arrefece.
O ar parado oferece seu silêncio falso.
Devagar a luz avança. Desde o leste intangível
acende o seco dos ruídos corriqueiros
com as mãos mansas na manhã ainda úmida.
Os dias de janeiro
Terra natal era a casa de minha avó
com seu salso-chorão pesado que pra mim
era a tristeza toda e a dor do mundo inteiro.
Também a aparição do mar, de embarcações
e de rajadas trazendo a aridez das dunas
para dentro dos olhos, sobre outro horizonte.
A descoberta da longitude traçando
um lugar de interstício. Os dias de janeiro:
um intervalo para cada nascimento.
Depois deles, retorno à vida de costume
onde sempre era fácil alcançar o céu
que por completo então cabia numa nuvem
firme e quase redonda em risco azul de giz
gravada no chão breve de qualquer calçada.
As mulheres que me foram
Essas mulheres todas que me foram,
desde àquele lugar antigo onde um verde
com seu brilho remoto até este aqui, dia após dia
restam desfeitas entre feições e outros gestos.
Tornaram-se iguais aos nomes corroídos
em restos de proa que mal conseguem lembrar
a embarcação anterior aos castigos do sal morto.
Léguas adiante de onde esqueceram-se soterradas,
as mulheres que me foram ainda carregam consigo
a extensão etérea de um continente inacessível.
Como um ruído maldito entre dez mil silêncios
suportam tudo que existe desde o início do mundo.
O mau tempo do rio
Sobre o riacho a tempestade
rude caía atravessando
toda extensão, que volumosa,
nem mais bastava fosse úmida.
Uma carcaça horrível feita
de agitação e lama e força
em vozerio (ronco), o corpo
somente mais grave tornava.
Agora sempre carregava
aquelas marcas pavorosas.
E ainda quando outro mormaço
o traga calmo, esse riacho
irá guardar no fundo o mesmo
corpo de chuva destroçado.
Um lugar
Quando meu pai chegou no fim do mundo
lembrava um rio em correnteza morta.
Fantasma cego de um sonido turvo,
o moço antigo vez por outra chora.
Dos bosques resguardados onde vivo
desde antes de pisar no extremo ponto
vejo sempre o mesmo homem mais menino
que alegre já passou por estes soutos.
Agora meu pai é um lugar sozinho,
uma extensão de terra, pedra e vento.
Fantasma cego segue o seu caminho
como se o moço ainda tivesse tempo.
De tudo que sobra
Daquele dia em diante, apenas uma sombra
sobre a superfície morta do espelho.
Do lado de fora da casa
toda sorte de distâncias
que um vento interminável rumorava.
Por curiosidade apanhei cada um de meus anos
e tornei a sonhá-los outras dez mil vezes.
Quase não era nada aquele vento,
mas trazia-me coisas do mundo inteiro.
Linguagem e semelhança
Retire do oleiro e seu trabalho
qualquer informação desnecessária
do barro
do forno
do humor das mãos.
Essencialmente, a figura consiste
nisso que sobra
[e não consta aqui].
Oriki da cheia
Muita força em repouso num cinza frágil.
Rios e rios que eram um.
Cume pra marca da água,
cimo sem monte.
Ilha ao redor de tudo.
Entulho. Sobra da margem.
Podre: muito nem dá pro gasto.
No lado de fora, por cima,
o silêncio todo de dentro das coisas.
Casario nesse escuro de lago fundo.
Barro. Santíssima Bárbara deslavada.
Três dias lentos fazendo água e mais nada.
Linha do tempo
É quando me alcança esse abandono
que o mundo principia.
Amanhã, tão logo o reescreva,
talvez alguém se detenha
na alternância das Idades;
provavelmente
à sobra do aproveitamento
e provavelmente também
com a mesma gravidade cotidiana
na qual o sol a chave o fundo manto
no futuro do inverso
nem suspeitem do que lhes devam
os fonemas —
nomes apenas de escora
entre outros fenômenos sem conta.
Visão de espécie alguma
Vultuoso, um cinamomo surpreende
verde-breve o mosqueado de mil pedúnculos
e repete, à vista,
o que de suas sílabas sussurra.
Porque seu ramo rememore a oscilação
sem causa do tempo
lhe vai bem recuperar assombros à casa
em frente
acercando-se de outro
e ainda outro alheamento.
De modo a enfileirar-se nessa nostalgia
alça variáveis ao irrefletido costume
do sempre igual e cada vez diverso.
março, 2021
Denise Freitas (Rio Grande, 1980) é escritora e professora. Autora dos livros O gesto sensível do mundo (Class/Bestiário, 2020), Percurso onde não há (Artes &Ecos e Editora Bestiário, 2017); Veio (Butecanis Editora Cabocla, 2014); Mares inversos (Casa Aberta Editora, 2010) e Misturando memórias (Editora Maria do Cais, 2007). Possui publicações em coletâneas e revistas de poesia e crítica literária como Sibila, Musa Rara, Modo de Usar, InComunidade, entre outras. Escreve o blogue Sísifo sem Perdas.
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