©carol m

 
 
 
 
 
 
 

VELEIRO



por mais breve e tênue

que possa parecer

foi a mais longa viagem que fizemos


às vezes parece que continuamos a seguir as ondas

ou temos a impressão

de que ainda não retornamos

à perspectiva de origem


nesta tentativa de equilíbrio

é impossível esculpir com precisão

o movimento daqueles dias

embora o horizonte continue a nos espreitar

sigiloso, bipolar e sensível

como sempre o avistamos


porque não fomos nós que tentamos alcançá-lo

o infinito é que nos conclama

diariamente

como um sonho

de velas içadas

como um ímã

de memórias permanentes

transbordadas







CONFISSÃO



nesta história

existe um coração que vaga

descalço

intacto

no centro de cada mar

onde te encontro


como um sonho guardado

há décadas

desligado em pleno voo







TEMPORADA



vamos passar anos

debaixo de chuva

centenas

milhares

e quando bater saudade

mais duzentos

secando ao vento







ALCÂNTARA

vim para passar doze dias
quando era repórter

permaneço há trinta anos

antes tinha um emprego
uma família

hoje tenho a paisagem
e um cachorro







DIÁSPORA



os elefantes chegaram de navio

nenhum aviso ou susto

quatrocentos

quinhentos e cinquenta

nunca foi possível saber a quantidade exata


tinham a missão

de pisotear

cabeças revoltadas

com a variação inconsequente das marés

como acontecia

nos antigos clãs dos desterrados


contrariando o acordo

os paquidermes permaneceram inertes

recordando a adolescência feliz

na quietude das estepes

do hemisfério de origem


para abrandar a tristeza

refizeram a pé

o caminho de volta


por aqui

as mentes condenadas

permaneceram puras

admirando os disfarces dramáticos

da lua







PLENITUDE



estão chegando os dias de julho

com sua embarcação de cor azul

atônita

climática


estão chegando os dias azuis

como a maneira de dizer

aquele poema

que ficou nos olhos do ano passado


estão chegando os dias de julho

para ampliar paixões tempestivas

que estão prontas

para viver uma eternidade

no céu deste mês







LENTE

debaixo deste agnóstico inverno
toda imagem é um quadro

o olhar pressente a agonia
dos dias de fuga

aquela última nau partiu
sem aviso
em brancas nuvens

nenhum farol
resistirá à desintegração da paisagem

o sopro rútilo do vento
distrai







DECLARAÇÃO



o poeta não dança na ciranda financeira

nem sabe conduzir um táxi

porque não apresenta solução

para o país em queda


mas sabe fotografar o futuro

com suas lentes de aumento

porque olha através do infinito

e registra no escuro

a lágrima que ficou por dentro







DOURA UM FAROL EM MEU DELÍRIO

agora sou poeta
autorizo o naufrágio
dos navios que cruzarem
nossos horizontes calmos

agora sou pirata
intimido tempestades
com meus lúdicos olhos vermelhos

agora sozinho
não pretendo esquecer
a paisagem perdida
do outro lado da baía







CARTA



nestes
tão
corto
bebo
depois
molho
preparo
dos enfermos

enquanto
de nossos
a vida
como

dias
tranquilos
as veias
um guaraná
das cinco
as plantas
a sopa


lembro
abraços
silencia
um gesto







UM POUCO DEPOIS DE TUDO

um dia
todos nós
num súbito desgosto
estaremos fora de órbita
sem bússola nem remédio
dispersos na vastidão do destino
como nosso encanto
troca de olhares no reflexo d'água
límpida
que se perdeu de vista







TRÊS NÁUFRAGOS, DOIS ASTRONAUTAS E UM AEROPLANO



vinte anos de poesia nos condenaram

à página deste bar

onde amigos ancoram paixões no asfalto


entre um gole e outro

invocamos o lamento de aventureiros

acorrentados em livros de cabeceira

jamais escritos

 



setembro, 2021



Eduardo Júlio (São Luís/MA, 1971) é poeta e jornalista. O seu primeiro livro de poemas, Alguma trilha além (prêmio da Secretaria de Cultura do Maranhão), foi lançado em 2005. O mais recente, O mar que restou nos olhos (7Letras), saiu no final de 2020. Em 2022, pretende publicar O sopro do lugar junto ao tempo


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