VELEIRO
por mais breve e tênue
que possa parecer
foi a mais longa viagem que fizemos
às vezes parece que continuamos a seguir as ondas
ou temos a impressão
de que ainda não retornamos
à perspectiva de origem
nesta tentativa de equilíbrio
é impossível esculpir com precisão
o movimento daqueles dias
embora o horizonte continue a nos espreitar
sigiloso, bipolar e sensível
como sempre o avistamos
porque não fomos nós que tentamos alcançá-lo
o infinito é que nos conclama
diariamente
como um sonho
de velas içadas
como um ímã
de memórias permanentes
transbordadas
CONFISSÃO
nesta história
existe um coração que vaga
descalço
intacto
no centro de cada mar
onde te encontro
como um sonho guardado
há décadas
desligado em pleno voo
TEMPORADA
vamos passar anos
debaixo de chuva
centenas
milhares
e quando bater saudade
mais duzentos
secando ao vento
ALCÂNTARA
vim para passar doze dias
quando era repórter
permaneço há trinta anos
antes tinha um emprego
uma família
hoje tenho a paisagem
e um cachorro
DIÁSPORA
os elefantes chegaram de navio
nenhum aviso ou susto
quatrocentos
quinhentos e cinquenta
nunca foi possível saber a quantidade exata
tinham a missão
de pisotear
cabeças revoltadas
com a variação inconsequente das marés
como acontecia
nos antigos clãs dos desterrados
contrariando o acordo
os paquidermes permaneceram inertes
recordando a adolescência feliz
na quietude das estepes
do hemisfério de origem
para abrandar a tristeza
refizeram a pé
o caminho de volta
por aqui
as mentes condenadas
permaneceram puras
admirando os disfarces dramáticos
da lua
PLENITUDE
estão chegando os dias de julho
com sua embarcação de cor azul
atônita
climática
estão chegando os dias azuis
como a maneira de dizer
aquele poema
que ficou nos olhos do ano passado
estão chegando os dias de julho
para ampliar paixões tempestivas
que estão prontas
para viver uma eternidade
no céu deste mês
LENTE
debaixo deste agnóstico inverno
toda imagem é um quadro
o olhar pressente a agonia
dos dias de fuga
aquela última nau partiu
sem aviso
em brancas nuvens
nenhum farol
resistirá à desintegração da paisagem
o sopro rútilo do vento
distrai
DECLARAÇÃO
o poeta não dança na ciranda financeira
nem sabe conduzir um táxi
porque não apresenta solução
para o país em queda
mas sabe fotografar o futuro
com suas lentes de aumento
porque olha através do infinito
e registra no escuro
a lágrima que ficou por dentro
DOURA UM FAROL EM MEU DELÍRIO
agora sou poeta
autorizo o naufrágio
dos navios que cruzarem
nossos horizontes calmos
agora sou pirata
intimido tempestades
com meus lúdicos olhos vermelhos
agora sozinho
não pretendo esquecer
a paisagem perdida
do outro lado da baía
CARTA
nestes
tão
corto
bebo
depois
molho
preparo
dos enfermos
enquanto
de nossos
a vida
como
|
dias
tranquilos
as veias
um guaraná
das cinco
as plantas
a sopa
lembro
abraços
silencia
um gesto |
UM POUCO DEPOIS DE TUDO
um dia
todos nós
num súbito desgosto
estaremos fora de órbita
sem bússola nem remédio
dispersos na vastidão do destino
como nosso encanto
troca de olhares no reflexo d'água
límpida
que se perdeu de vista
TRÊS NÁUFRAGOS, DOIS ASTRONAUTAS E UM AEROPLANO
vinte anos de poesia nos condenaram
à página deste bar
onde amigos ancoram paixões no asfalto
entre um gole e outro
invocamos o lamento de aventureiros
acorrentados em livros de cabeceira
jamais escritos
setembro, 2021
Eduardo Júlio (São Luís/MA, 1971) é poeta e jornalista. O seu primeiro livro de poemas, Alguma trilha além (prêmio da Secretaria de Cultura do Maranhão), foi lançado em 2005. O mais recente, O mar que restou nos olhos (7Letras), saiu no final de 2020. Em 2022, pretende publicar O sopro do lugar junto ao tempo.
Mais Eduardo Júlio na Germina
> Poesia 1