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MINHA HUMANIDADE



Minha humanidade sai para passear

e cumprimenta os passantes.


Eles ferem minha humanidade.

Ela nunca esquece.

Uma ferida aberta.


Minha humanidade

às vezes não coincide

com o que eu penso ou sinto.

Está sempre tão longe.


Minha humanidade precisa escolher

entre a natureza e a graça,

entre o nada e a dor,

minha humanidade diz:

entrem.


Nada do que é humano

é minha humanidade.


Minha humanidade cresce.

Minha humanidade é o pior de mim.



*



Minha humanidade,

meu fracasso:

aquele abraço.

 

É tão pequenina a minha humanidade

e é logo ali o oceano.

As ondas vêm e vão 

cada vez mais rápidas:

Minha humanidade, que filhadaputa.

 

 

*

 

 

Minha encruzilhada

entre o hábito e o susto,

meu assombro,

minha causa perdida,

meu desespero,

meu alumbramento, 

meu descanso noite adentro,

meu acontecimento,

minha dor de cabeça,

meu carnaval,

meu paraíso perdido,

minha humanidade:

somos todos iguais

e precisamos dormir.



*



Minha humanidade envelhece.

Minha humanidade é selvagem

e zumbe e berra tua decência

teu passado uiva e ruge

e sibila e relincha tua memória

tua lucidez guincha e brame

e berra e ladra tua malemolência

tuas certezas balem e crocitam

e cacareja e ulula tua solidão

teu acaso muge e zurra

uiva e ruge tua necessidade

grasna e grunhe teu mundo diminuto:


Minha humanidade errou

de humanidade.



*



Minha humanidade talvez

seja o escafandrista que hauriu

amor e dor das profundezas de mim.

 

O que é o que é 

que foi perdido e nunca foi ensinado

em minha humanidade?

 

Minha humanidade

faz mesuras

à víbora interna

que carrega consigo.

 

Alguém

(era a minha humanidade?)

segurou a tâmara trêmula

e ofertou à primeira passante da praia deserta.



*



Minha humanidade estava tão sozinha.

Súbito chega a tua humanidade:

minha humanidade só existe com você.

 

Minha humanidade diz: adeus!

E fica por isso mesmo.

Minha humanidade já disse tudo:

não tem nada a dizer.

 

Meritíssimo: minha humanidade não é o bastante,

por isso, a ela acrescento o sal da terra,

o paraíso móvel e o tempo indomável.

 

À minha humanidade

dê um cão e um pouco de café

e ela se sentirá completa.

 

 

*

 

 

Minha armadilha,

minha Audrey Hepburn,

minha ruína secreta,

meu sertão,

minha sombra,

minha prata,

meu engano,

meu sono de veludo,

mortos esquecidos no musgo,

minha volta pra casa,

meu desastre,

minha frágil matéria:

não somos todos iguais

e precisamos acordar

 

acordar no fim da manhã de domingo

talvez rente ao muro

na ranhura do chão de ardósia

na fenda dos paralelepípedos

no jardim das cerejeiras

próximo ao baobá sagrado

ou do álamo tremulante

e receber, no mínimo, o amor sem fim

de quem vê no urubu esquecido entre nuvens

nos cavalos selvagens soltos no mercado

em celacantos anônimos dançando na lama

— a minha humanidade







FALSE START



Os olhos organizam a paisagem

no momento em que a manhã,

bloco bruto de granito,

lança seu manto branco de espanto

sobre o dia em transe e em trânsito.

No parque o velho passeia com a cuidadora

de frente para o jardim em que predominam flores fúcsias.

Crianças disputam uma bola preta pintada de dourado 

mas que pode ser ouropel (sem nenhum desdouro).

Filandras se agitam como ondas azuis e crinas

sombra projetada ao meio-dia.

Tantas cores confundem e azucrinam,

mais uma vez o sol leva o crédito

pelo amarelo e seu repertório de alegrias.


A tarde range sua turbina iridescente

e repõe a dura luz do vermelho.

Em diversos pontos da cidade 

as pessoas não param de funcionar.

Sentado no banco da praça, o vendedor

de enciclopédia pragueja contra a tecnologia.

O geólogo vê ao fundo a montanha

e se esforça para imaginar o mar do qual ela se ergueu,

índigo mar que reflete raios de acrílico serpeando sobre as águas.

Ele, o geólogo, hesita em dispensar de seu campo de visão

o verde em uníssono das árvores em torno.

Elas, as árvores, se fazem notar

como se em riscos erráticos mas definitivos

a nau grafasse, antes do naufrágio,

sua presença na superfície.


A noite conserva a conversa entre as cores

antes que o cinza empedre

o que foi salvo do dia.

A violácea membrana da noite

turva a volta para casa

do banqueiro com dedos gastos pelo manômetro.

Longe dali, o mineiro cava fundo na lavra a céu aberto

e o salário dele garante o passeio do pai no jardim de flores fúcsias.

Um tranco na alma avisa que

o ciclo pode se interromper a qualquer momento

como um cavalo que refugasse na corrida

e voltasse para o início

(nunca é o mesmo de antes)

quando todas as coisas recomeçam e recomeçam e recomeçam

desta vez em um mundo flutuante que admite

o cinza contra o cinza,

o cinza contra o esquecimento.







ENQUANTO DORMES



Enquanto dormes, sem que percebas,

reparo teu sono: teu corpo, meu mundo.

a luz da arandela incide sobre a movimentação

rochosa do granito, o quarto mudo,


eu me pergunto: o que se passa? Teus

200 ossos a me convocar em vário ritmo:

a carne é franca. Ossos não mentem,

a carne é franca, a repetir num rito.


Ave, palmas breves; ave, flexor do hálux;

salve, pectínio: tua pelve, minha praia.

E no tumulto do sangue, ave, valva;

salve, átrio; e se joguem na pista, na veia, na raia.


Enquanto dormes, amo teu esplênio,

o escaleno anterior e o posterior, dando voltas

— o que se passa? As articulações estalam,

um involuntário sorriso: teu riso, mil volts.


Muito acontece enquanto dormes:

vértebras e tendões se entendem, sem áporos;

músculos profundos dialogam,

e amo tudo o que se passa sob teus poros,


aqueles mesmos que envolvem, lâminas de tecido,

teu corpo, e respiras, entreaberta fresta,

e me convidas para a algazarra de seres vivos

a que serves de abrigo: teu corpo, uma festa.


O movimento rápido dos olhos. O movimento

rápido das pernas. Pra que tanta pressa,

meu Deus? Se fatalmente te sei por um

és-não-és, digo, por um triz, tão presa


a mim e ao mesmo tempo tão alheia 

ao meu lento escrutínio: teu sono, meu garimpo. 

E, não só com os olhos, mas com todos 

os sentidos, teu corpo desço e grimpo


Súbito, me lembro: hoje, mais cedo,

comeste fruta gogoia. A lembrança brusca

do alimento se aventurando por teu corpo,

a começar do véu palatino, em busca


de sossego, de um final remanso onde se dissipe

(o que se passa?) em breves rusgas

enquanto dormes, e é estranho, mesmo para mim,

o crescimento imperceptível de rugas


e distraio-me por um segundo, mas retorno

a teu corpo, que nunca é o mesmo: meu pódio

acolhendo uma grande família: prócero,

esplênio e ilíaco, amo vocês, sem réstia de ódio.


Teu corpo em repouso, a carne é franca

e fracas são as horas em demasias de relógio.

Aqui, neste quarto, sob o comando de lobos

e hemisférios, enquanto dormes elogio

 

teu corpo em repouso, uma senha — não 

para confundir as leis que regem teu sonho —

mas para salvar a desusada emoção

com que penetrei fundamente no teu sono


pois sei que estás para acordar, e a mim

só resta o arrepio do toque, apenas sobra

o gesto de deitar em teu colo, doce

e úmida província: teu corpo, minha obra,


aquela mesma que com mil chamas

permanece alheia a um mundo em que tudo ruísse

e ainda assim vibrássemos em paz,

até que despertasses, e o teu corpo todo risse.







EU-LEITOR ELA-LÍNGUA



1.

Eu a penetro

e ela arde-se

flórea

e ela entrega-se

em favos

e ela pega

carona

em meu hálito

e juntos saímos

Leme

Leblon

Marina da Glória

Lapa

Arpoador

Pedra da Gávea


Carrego-a comigo: mistérios

Ela se deixa carregar: montanhas


Minha ela, meu elo

com o mundo

e o ardor inflexível das coisas


Alguém arranha

a superfície das letras,

à procura

do sentido oculto

entranhado nas palavras


(Marcamos um encontro

bem onde as palavras se desbotam.

Alguém não foi, e eu não soube.)



2.

Língua: um código comum

para que todos se desentendam

em jogos de amar e aprender

fingir e recompor

traduzir e somar

cantar e dividir 

entre outras ocupações


Em um passeio aéreo percorro

Leme

Leblon

Marina da Glória

Lapa

Arpoador

Pedra da Gávea

Mas antes de alcançar esses lugares

chego nas palavras que os nomeiam.


Essas palavras derretem na boca de quem fala

e deslizam para o interior de ouvidos atentos



3.

Não digo sueño

Não digo dream

Não digo traum

Não digo rêve

mas à revelia de mim

Eu digo 

(ela me obriga a dizer)

sonho.


E eu sonho que ouvi Rita dizer: desfiambre-me.

E eu digo linde e blenda

e digo borco e gargalo

e digo gládio e enigma

com todo o meu ser



4.

Cobogó

Parangolé

Cobogó

Parangolé

Cobogó

Parangolé


— Que foi isso, maquinista?


— São só trilhos a ranger no entressonho

São vagões metálicos percorrendo a paisagem corrompida

São as primeiras folhas que brotam, depois da chuva

É o ruflar de plumas a erguerem-se em voo

É o murmúrio de mil corações batendo

Uns nos outros



5.

Na ausência de luz, ninguém reconheceu as vozes que chegavam.

E que som aquele refluindo no súbito luar?

Românico? Moçárabe? Tupi? Provençal?

Para quem está no escuro, tanto faz o sotaque da lua.

Língua-oiti, da família das rosáceas.

Língua de lagarta ziguezagueando

que se lança e se recolhe na via oblíqua.

Língua de com ela permitir-se linguagens intocadas.

O que falamos não é a língua, é secreta arquitetura

Istmo a unir terras desoladas, 

Iguaria oferecida a todos, mas que poucos recebem.

Língua-pária, cercada pela América espanhola e já toda retorcida.

Três vezes língua ambarina, língua laboriosa:

lusa-me, lusa-me, lusa-me.



6.

(Ela)


Toque teu riff em paz, cara, toque teu pinho,

Imprima teu ritmo no mundo avesso ao teu ritmo

Toque teu banjo, malandro, teu clarim e outros metais

Martele tua tecla, bróder, teu cravo na amplidão

Prefira teu sax teso, meu rei, os pistões de tua trompa

Bata teu bumbo, irmão, e acorde os de lá e os de cá

 


7.

Parangolé 

Cobogó

Parangolé 

Cobogó

Parangolé 

Cobogó


— Que foi isso astronauta? 


— São só planetas se alinhando, ao capricho de vogais e consoantes

É a vertigem insubstante da Terra vista de cima

É a tempestade que desperta os circunstantes

São olhos que se encontram no rumor do abraço pressentido

É o murmúrio de mil corações batendo

Uns nos outros



8.

Língua de organza e crepom, ainda não lânguida,

soltando escamas dissipadas no pó do chão.

Língua em mim tão monstruosa, do tamanho da estrela diminuta.

Língua-guelra, língua afiada em cacto, satori no sertão.

Língua de uma cidade chamada Cristália. Ou Jotuomba.

De um lugar conhecido como Sofotulafai.

Ou Saramenha. Ou Tlon. Ou Sardanapalo.

Língua dos negros de Tabatinga, pé preto no barro branco

(Será a mesma que acompanhava os dinossauros de Peirópolis.

até desaguar em palavras como nelore, gir e guzerá?)

Língua em bis, de todas as águas e de todos os fogos,

que me faz companhia na noite mais longa do inverno.

Todos olharam para trás e foram transformados em sol, por erro de revisão.

E saíram todos lançando raios de luz no musgo e na madeira oca.




9.

(Ela)


Toque tua tabla de cor e alteado, tua gaita veloz

Afine o fole, meu velho, as cordas de tua viola

Toque teu bongô, nego, que percute no jardim dos sonhos

Dedilhe tua lira, parceiro, e sem pressa ajuste o pandeiro

Toque teu baixo, leve na flauta o que agora desafina,

batuque teu tambor, camarada, teu límpido tantã


(Na noite alta a música das esferas 

impõe tua orquestra à inaudível usura dos dias)




10.

Eu a amo 

e de volta ela me ama

com a precisão de um troço doido

que, num esforço último,

afasta o caos

despede o acaso

e se infiltra

entre palavras

que se unem

para fazer um poema: este poema.







OS PROFETAS



Enquanto todos dormem Congonhas

Joel, Ezequiel e Daniel saem déu em déu em meio à neblina

no Hotel Todos os Mundos planejam sutis peripécias


Enquanto todos dormem Congonhas

Habacuque sai déu em déu em meio à neblina

ganha no muque trezentas e tantas quedas de braço


Olhai em torno: cadê meus profetas cadê

Procurai nos arredores rastros difusos de pedra-sabão

Dia virá voltam mais não


Enquanto todos dormem Congonhas

Jonas sai déu em déu em meio à neblina

vai à lona de encontro a inimigos tantos contra ele


Enquanto todos dormem Congonhas

Naum sai déu em déu em meio à neblina

nem adamantium o impede de atravessar as montanhas


Olhai em torno: cadê meus profetas cadê

Procurai nos arredores rastros difusos de pedra-sabão

Dia virá voltam mais não


Enquanto todos dormem Congonhas

Amós sai déu em déu em meio à neblina

faz pós na América com ênfase em canto de sabiás


Enquanto todos dormem Congonhas

Baruc sai déu em déu em meio à neblina

trama seus truques enquanto ludibria com ardor mais ardis


Olhai em torno: cadê meus profetas cadê

Procurai nos arredores rastros difusos de pedra-sabão

Dia virá voltam mais não


Enquanto todos dormem Congonhas

Jeremias sai déu em déu em meio à neblina

dor e alegria o acompanham em cafés nas ruas de gnaisse


Enquanto todos dormem Congonhas

Oseias sai déu em déu em meio à neblina

joga para a plateia nos festejos do Aureo Throno Episcopal


Enquanto todos dormem Congonhas

Isaías e Abdias saem déu em déu em meio à neblina

vão ao dia futuro e estranham a ausência dos convivas


Olhai em torno: cadê meus profetas cadê

Procurai nos arredores rastros difusos de pedra-sabão

Dia virá voltam mais não



[Poemas do livro A máquina de existir. Pedra Papel Tesoura, 2018]



junho, 2021



Fabrício Marques nasceu em Manhuaçu/MG, em 1965, e mora em Belo Horizonte desde 1992. Publicou os seguintes livros de poesia: Samplers (Relume Dumará, 2000, Prêmios Culturais de Literatura do Estado da Bahia), Meu pequeno fim (Scriptum, 2002) , A fera incompletude (Dobra Editorial, 2011, finalista dos Prêmios Portugal Telecom e Jabuti) e A máquina de existir (Pedra Papel Tesoura, 2018). Também é autor do livro-reportagem Uma cidade se inventa (Scriptum, 2015, finalista do Prêmio Jabuti), Participa de diversas antologias, e tem poemas em jornais e revistas impressas e eletrônicas, no Brasil e no exterior.


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