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PECADOS DE LÚCIFER


Quisera dançar um filme sobre o terror
de estar vivo e a falsa calmaria da morte.

Quisera esculpir a letra que fala,
de tão rara, abstrata, disforme.

Quisera pintar a cena teatral feito
impressionismo: palco é mais que real.

Quisera fotografar o salto germinal,
de ossos quebrados em posição fetal.

E corporificar Davi, devolver Arte
à placenta pré-ontológica Tupi.

Quisera filmar palavras invisíveis,
fazendo cegos enxergar cinemilagres.

Quisera ser o âmbar que carrega DNA do elo
perdido do Australopithecus com Shangri-La.

Quisera carregar o fardo sem fundo e par,
feito seu Pai, da graça eterna: criar.




OVELHA NEGRA


Não sou feito essa gente crente que mastiga vento,
persignando o caos ao Deus-dará do livramento.

Não sou feito essa mente rente que saliva tempo,
de quando tempo já não haverá ao firmamento.

Não sou feito essa frente silente que almiscara lenho
das fornalhas-araucárias de quem não tem cenho.

Eu sou o Vento: mastiga-me, respira-me, ou te arrebento.




O DEUS DO DESERTO



O Deus do Deserto cegou as

toupeiras: achavam que a luz

as amava, enquanto as fustigava.


Na Terra do Sol, quem

cega tem só um olho.


Mas, mesmo Caolho, as toupeiras se

aninhavam na sombra de Sua vilania.


Agora, Dele me deserdo.

O Deus do Deserto é apenas 

a última espera dos desesperados.


Das areias emergem catedrais

de sangue beatificado.


O Deus do Deserto nunca foi criança.


O Deus do Deserto quer o mundo

feito à Sua imagem e semelhança.







JOGANDO EM CASA



No mundo da minha

Criação, Deus sou Eu.


Aqui, posso pelejar

com Deus-alienígena

de Igual para Igual.


Eu posso, inclusive,

ganhar por nocaute,

com um uppercut

no primeiro round.


(Mas, lá fora, ponho

o rabo entre as pernas,

e rezo para que Ele

sofra de Alzheimer.)







PARA BRUXAS E NINFAS


A zazueira da tarde exala seiva
de jade liquefeita em chá de
ervas mágicas, nas cuias
e cátedras do caldeirão
das anáguas, aos trapos,

espartilhos, às tesouras, os sutiãs,
às fogueiras — e a lagoa dos sapos-bois
assombrada: a mística que lhes faltava era
a métrica livre, verso solto, poema cujo fim
não é predeterminado; só o oposto do soneto
vivifica a incontinência formal do amor.




TRIANGULAR – PARA CATHERINE, JULES E JIM


3 é dois círculos
incompletos,
instável
intersecção
entre três seres,
ditos abjetos.

3 não tem cara,
é discreto: pode
se fantasiar de 6,
de 9 ou até de infinito.

3 é um grito
proscrito.




PAI-NOSSO


Pai nosso, onde está o Céu, que desaba
sobre nossa fome? Venha Vós ao
Vosso Reino, seja seita Vossa
maldade, assim na guerra
somos os réus, o ferrão
nosso de cada dia nos
dai hoje e esmagai as
demais crenças assim
como nós esmagamos
a quem Vos tem ofendido e
não nos deixeis subir à salvação,
mas cegai-nos com sal, por bem.




BAIXIO DAS BESTAS

PSEUDOCRISTÃS



Animais na pista,

soberba em crista;

queima, vigarista!


Malícia alfombra,

um Brasil em coma,

Canaã versus Sodoma.


Bocas-intempéries:

vômito de Hermes,

o hálito de Hades;

a fé ao Céu-revés.


Samambaiarraia,

trupe da infernália,

Bíblias-de-navalhas.


Ímpios transeuntes,

pecados de mamutes,

de um mal que Malafaia.







PROVERBIAL


A regra de ouro:
quem tem ouro
faz a regra.




NADA A TEMER


Quem foi a favor do Golpe,
põe o dedo aqui: neste fio
elétrico desencapado,
reacionário safado.




CADEIA
ALIMENTAR
DO CAPITAL


A linha da vida
rasgada pela
ferrovia na
palma da mão.

A fila do pão,
sovada de formigas
pardas, aluvião.

E o tamanduá,
de fraque e bengala,
esnoba e suga
a multidão.

E cego, inda reclama:
de novo feijão?





CIRCULAR


A linha da dúvida
perfura os olhos
do normal.

A chama da indiferença
proclama a morte
do real.

Mas a gana da avareza
não cala a sede do
mar de sal.



[Do livro Aos Tímpanos da Zacroqueia. Urutau, 2021]

 



dezembro, 2021



Fernando Ramos. Poeta e escritor nascido em São Paulo, em 1984. Tem textos publicados em algumas das principais revistas literárias brasileiras e participou de diversas antologias. Em 2018, publicou pela Editora Patuá o romance filosófico Egonia — 9 mm de Prosa. Em 2021, publicou pela Editora Urutau o livro de poesia política Aos Tímpanos da Zacroqueia. Em paralelo, também atua como cineasta, roteirista e compositor.


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