©engin akyurt

 
 
 
 
 
 
 

Chama-se Yukiko. É uma rapariga japonesa, a meio dos vinte anos, estatura média, cabelo da cor do carvão, o rosto imperscrutável, olhos escuros, a pele demasiado pálida, ombros descaídos, como se estivesse sempre exausta. Veste uma t-shirt branca, anunciando a marca Nintendo, já rota, a bainha descosida, e umas calças de fato de treino de algodão cinzentas. Está descalça, as unhas dos pés pintadas de cor-de-rosa, o verniz agora a descascar, em pequenas lascas.

"Por que não te cuidas, como as outras raparigas?", perguntava ele.

Yukiko está lá, mas já não está ali. Ignora há quanto tempo se encontra sentada no chão, numa carpete beije, de pernas cruzadas. Seriam minutos? Foram horas? Contempla fixamente o ecrã gigante do televisor, colocado em cima de uma mesa de madeira branca, baixa, minimalista. Não existe qualquer imagem: apenas estática, como chuva ou neve, num dia de ventania. As pilhas do telecomando gastaram-se há algumas noites. Não acha em si energia sequer para tocar no botão e escolher outro canal.

"Penso que nunca te esforçaste o suficiente no emprego", criticava ele. "Algum dia esperas ser promovida, assim?" 

A rapariga habita um exíguo apartamento de uma única assoalhada, no vigésimo andar de um arranha-céus, não longe do porto de Tóquio. Não avista o Oceano Pacífico por causa da muralha de arranha-céus, não escuta as gargalhadas das gaivotas, descrevendo hipérboles sobre as ondas, nem ouve os apitos dos barcos distantes, mas ainda tem o céu. Por vezes, deleita-se a tarde inteira a contemplar as nuvens, cambiando de branco para azul, de azul para cobalto, de cobalto para índigo, de índigo para preto, dissolvendo-se na noite. Como fazia quando era criança, nos verões passados numa praia em Kyushu. Sorri ao recordar.

"És um bocadinho infantil, não?", perguntava ele, em tom crítico. "Já tens vinte e cinco anos! Com a tua idade eu geria um setor da empresa."

Outras vezes, noite dentro, quando o burburinho das ruas se reduz a um murmúrio e se escuta o vento assobiando entre os prédios, Yukiko perscruta os edifícios em frente. Aqui e além avista uma janela acesa, um pequenino rasgão de luz. Põe os óculos de plástico cor de rosa e franze a vista. Talvez seja algum vizinho com insónias, como ela. Talvez esteja a contemplá-la também nesse preciso momento. E pergunte para si: quem será aquela jovem de camisola branca, o que sente, quem procura, por que motivo não dorme?

"Uma noite em claro é um dia de trabalho perdido", advertia ele, de sobrolho carregado e dedo em riste.

Às vezes, Yukiko deleita-se com vinis de bandas jazz japonesas, pela noite dentro, baixinho, num gira-discos antigo (nenhuma dessas imitações modernas), da marca Dansette comprado por tuta-e-meia no mercado de Shinjuku. Nele, escuta Masahiko Togashi, Yosuke Yamashita, Toru "Tiger" Okoshi, Itaru Oki e outros instrumentistas de génio. Depois, a música termina, a agulha com a ponta de diamante ergue-se, mas o disco não para. Gosta de o ver rodar, rodar, rodar, hipnotizada.

"Que velharia! Por que não ouves CDs?", questionava ele, perplexo.

Um dia, aquele fulano azedo trocou Yukiko por uma jovem estudante de política na universidade privada de Rikkyo. Explicou à ex-namorada que a nova rapariga era dinâmica, competitiva, sofisticada, moderna, desportiva, voluntariosa, ativista e, acrescentou, após uma pausa estratégica, bonita. Tudo, afinal, suspirou, o que Yukiko não era. Nunca mais se viram.

Yuki tem vinte e seis anos, estatura baixa para rapaz, cabelo negro espetado, com pontas tingidas de azul, usa óculos grossos de massa (é quase uma toupeira), e enverga habitualmente camisas aos quadrados, fora de moda, jeans e sapatilhas Onitsuka Tiger — o seu único luxo, até porque ganha tão pouco.

"Olha o teu aspeto!", criticava a mãe, abanando a cabeça. "Como esperas encontrar uma rapariga assim?"

A sua paixão é outra. Queria ser escritor, mesmo antes de nascer. Sente-o em cada fibra de si. Está-lhe inscrito no ADN, mesmo se mais ninguém da família possuir vocação para as letras: o pai labuta como advogado num importante escritório, das oito da manhã até o sol se pôr; a mãe é vice-gerente numa empresa de importação e exportação na Keiyo Industrial Zone, na Baía de Tóquio, e nem fins de semana tem.

"Que bonito… Ser um autor! Um contista! Mas vais viver de quê exatamente?", questionava o pai.

Yuki encolhe os ombros e engole o silêncio como pode. Sempre achara as pessoas de papel, tinta e imaginação mais interessantes do que as de carne e osso. Aos treze ou catorze anos, enquanto os colegas e amigos derretiam a mesada em videojogos, ele poupava para ir ao bairro de Jimbocho, no centro de Tóquio, o paraíso dos livros em segunda mão. Gastava horas e horas a percorrer diligentemente as estantes, em busca de uma raridade ou de um tesouro que a carteira permitisse adotar.

O seu tempo livre era consumido entre as leituras e a escrita. Os gostos não podiam ser mais ecléticos: conseguia apreciar os poemas e contos clássicos de Yukio Mishima tanto quanto o estilo livre de Hiromi Kawakami; sublinhava a caneta verde parágrafos inteiros de Yasunari Kawabata e não deixava uma linha de Haruki Murakami por ler. Acreditava que um escritor talentoso até com os maus autores poderia aprender algo. Lia noite dentro e, não raras vezes, adormecia com o candeeiro da mesa de cabeceira ligado.

"Não devias estar a estudar?", repreendia-a a mãe, quando o via bocejar.

Um dia, Yuki largou a meio uma aula desesperadamente soporífica do curso de Engenharia Eletrónica, que os pais tinham escolhido por ele, no Shibaura Institute of Technology, e jurou não voltar. Nem sequer levantou o sobejante das propinas, a que tinha pleno direito. Há muito que o mundo dos chips, resistências, circuitos, memórias, discos rígidos, lhe não dizia nada. Estava ali, mas já não estava ali.

"Nunca serás ninguém na vida!", vaticinou o pai, enquanto esfregava metodicamente uma nódoa de wasabi na gravata cinzenta.

Porém, ele estava enganado. Yuki queria ser tudo. Hoje, para se poder dedicar à escrita, moureja seis dias por semana na cozinha de uma hamburgueria, em turnos infindos, sempre de pé, um sorriso afivelado no rosto, a servir cliente após cliente, as mesmas palavras, proferidas à maneira de um autómato.

"Olá, bom dia! Em que posso servi-lo? Já conhece as novas promoções? Batatas fritas médias ou grandes? Quer ketchup ou prefere maionese? O que vai beber? Por mais 50 ienes deseja uma Coca-Cola grande? É para comer aqui ou vai levar para casa? Tem o aplicativo?"

 No final da tarde, entorpecido pela exaustão, quase sem sentir as pernas, com o odor peganhento dos fritos impregnando-lhe o cabelo, o jovem apanha o autocarro a abarrotar de zombies para o minúsculo apartamento onde vive, não longe do porto de Tóquio.

E, então, Yuki, o escritor, ganha vida. Põe um disco a tocar na vitrola, senta-se à secretária e consulta as notas tomadas para aquela história. Nunca digita os textos num portátil; prefere batê-los numa máquina de escrever de cor azul celeste, uma Buddy Easy Touch, que adquiriu no mercado de Shinjuku, após regatear com um lojista que não parecia, afinal, querer vendê-la.

Define os seus contos como "fatias da vida", uma expressão comumente usada na literatura para definir episódios do quotidiano, cenas quase banais, pulsando de realidade. Regularmente, envia-os para várias revistas japonesas dedicadas à literatura. Algumas vezes, devolvem-lhe os originais, com uma carta seca. Outras, aceitam-nos e elogiam-nos, até. Contudo, impõem a condição de lhes enviar o ficheiro digital, pois já ninguém escreve à máquina em 2020. Yuki acede, a contragosto.

Dois andares abaixo, uma mãe típica de uma menina vulgar acabou de viver uma situação banal. A pequenina, de sete anos, cedera à manipulação psicológica e condescendera, com descomunal relutância, saliente-se, em ir a uma consulta no dentista. Não foi o primeiro argumento a convencê-la: "Se não arranjares esses dentes, vão ficar encavalitados. Os meninos nunca vão gostar de ti." Foi o segundo: "Compro-te um brinquedo, se abrires a boca e deixares a senhora doutora ver-te os dentinhos."

A pequenina resistiu às sevícias heroicamente, durante meia hora, e saiu do consultório desprovida de três dentes do leite. Como recompensa, a mãe oferece-lhe um enorme balão amarelo, com um smiley desenhado. Exultante, a menina sorri para o boneco, exibindo os feios buracos onde minutos antes havia um sorriso celeste.

No entanto, quis a divindade japonesa do vento, Fujin, que a história tivesse um outro epílogo. Soprou com tanta energia que a menina deixou escorregar o cordel. Liberto, o smiley ganha altura, embora sem subir muito. A mãe salta para o agarrar. Um bêbedo faz o mesmo. Colidem aparatosamente, originando um chorrilho de acusações, palavras feias e gestos ameaçadores que fazem chorar ainda mais alto a pequena.

Da sua janela, Yukiko assiste a toda a cena, espantada. No outro lado da rua, numa pausa para o cigarro, Yuki também não deixa de observar aquela fatia de vida, digna de um dos seus contos. Primeiro, riem-se. Depois, ambos sentem compaixão pela rapariguinha, que saltita em tentativas tão fúteis quanto desesperadas para apanhar o balão, a girar sobre as suas cabeças.

Num ápice, Yukiko precipita-se para o elevador, no décimo andar. Yuki, que mora mais perto da rua, galga alguns lanços de escadas, mas perde tempo a contornar uma das velhotas do primeiro andar, que preenche todo o espaço com os sacos de compras. Por isso, acabam por chegar à rua os dois em simultâneo.

Yukiko cruza a passadeira, descalça, sentindo, pela primeira vez em quase quinze dias a frescura da brisa e o ruído das buzinas, vozes e transeuntes. Por seu turno, na pressa, Yuki tropeça no cordão desapertado da sapatilha, desequilibra-se e tem de se amparar num hidrante. Chega, sem fôlego até ao pequeno grupo, constituído pela criança, a mãe e o bêbedo. Salta o mais que pode, mas é baixo e apenas consegue fazer o balão girar ainda mais. É a vez de Yukiko tentar.

"Upa, upa", encorajam a menina, a mãe e o bêbedo em uníssono.

À terceira tentativa consegue tocar no cordel, mas deixa-o escapar. Depois, é a vez de Yuki. A sua mão ainda roça no smiley, mas a borracha escorregadia atraiçoa-o. Por fim, Yukiko enche o peito de ar, salta e agarra o fio, com firmeza. A jovem debruça-se e entrega o balão amarelo à menina, que o abraça, perante o aplauso dos lojistas.

Yuki olha para Yukiko e sorri-lhe. Ela devolve o sorriso, timidamente. Dá-se conta de que está descalça. Ele finge não reparar nos pés dela, sujos pelo lixo da rua. Nenhum deles se importa. A criança ri, perdidamente, sem os três dentes, a mãe agradece, o bêbedo aplaude e mais nada, no mundo, importa. Porque eles agora estão ali.



junho, 2021



João de Mancelos nasceu em Coimbra, em 1968. É doutorado em Literatura Norte-americana (Universidade Católica Portuguesa, 2001), pós-doutorado em Estudos Literários (Universidade de Aveiro, 2006-2012) e agregado em Estudos Culturais (Universidade de Aveiro, 2015). É professor universitário. Publicou vários livros de ensaio, poesia e ficção, com destaque para Línguas de fogo (2001), O marulhar de versos antigos: A intertextualidade em Eugénio de Andrade (2009), Introdução à escrita criativa (2009), O pó da sombra (2014), Contos de amor, desejo e perda (2018) e Nunca digas adeus ao verão (2021). Foi distinguido em diversos concursos literários. Dois contos seus foram adaptados a teatro e um a cinema, no Brasil.


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