MANUAL DA NOBRE ARTE DE
ERGUER MONUMENTOS
Ir rodeando
a praça.
(Circunvoluções
no esteio de pedras.)
Contornando bancos,
relembrando augúrios.
(Escombros
e desperdícios.)
Semeando pombos
— brotos de asas.
(Lançar é um movimento
de resgate.)
Coletando visgo
no recanto dos corpos.
(Gozo é liga
que não desata.)
Estendendo ócio
— cabedal dos pés.
(Solado gasto,
tempo posto.)
Corrompendo algozes
— navalhas cegas.
(A margem espreita
a cova.)
Lambendo as águas
dos anjos despidos.
(Fonte jorra,
vida escorre.)
Celebrando o sopro
do intangível.
(Repicam trovões,
fulguram metais.)
Destronando o homem
no patíbulo.
(A farsa é célebre;
o riso, contaminado.)
Liberando o gramado
— repasto dos sonhos.
(O que sobrevive
galopa despido.)
Atiçando velas
nos frascos vazios.
(O fogo conflagra
e encanta os bárbaros.)
Descobrindo a cruz
— estendendo o manto.
(A falha não é crer:
é se apropriar.)
MANUAL DE SE ENVEREDAR EM CAMINHOS
Os campos eram de um algo
de desprezar estradas,
percorrer vazios,
recontar as sombras.
Era um bastar-se
despercebido.
(Mesmo sem,
era muito.)
Preparar saltos,
conter a fadiga.
Era tumulto
— solidão na margem
do construído
sem rumo.
Mote de traças,
corte de foices.
Mais do mais,
se procura a paz
das labaredas,
do zumbido doido.
Ofuscar o ínfimo
de reconhecer-se
o mínimo sopro
no entardecer
da manhã
cuspida no tacho
do Universo
assombroso.
MANUAL PARA ESTILHAÇAR VIDRAÇAS
Da raiz do nome
─ esses dedos cravados
no beiral da fenestra ─
extrair a resina impura.
Forjar as velas,
acender o arrebol na cela escura.
Sugar o ar,
queimando os segredos
da memória das frestas.
Comemorar o vácuo
estendido no vazio
entre as unhas
e as paredes.
Tornar insuportável
o convívio com a fumaça
do tempo
— desfazer-se da saudade.
Alardear a fuga
inútil da cama,
o suicídio das fotografias.
Com a cor das tintas
grudada na pele,
se esfregar nas quinas
para sufocar seu cheiro.
Cuspir nas plantas secas,
urinar nas portas,
misturar-se ao cheiro
das cinzas.
Soltar o grito
e descobrir-se eco.
Serrar os pés da cadeira
— espalhar no piso
a última réstia
da certeza.
Arregalar os olhos
─ sustentar as pálpebras e sua obtusa fuga.
Não contornar os segredos
─ sacrificá-los.
(Perceber que o fora
é um longe;
e o dentro,
barreira intransponível.)
Sentir o arrepio
das cortinas,
o crepitar dos tacos,
o suor da vidraça.
Sujar de sangue
a moldura sem espelho.
Reparar na janela
e sua mirada sem luz.
No breu da não paisagem
misturar um círculo negro
─ alvo no escuro.
Pressentir o estalo
da grade.
Dispensar o portal
da crença.
Aceitar o flagelo do ícone,
a lascívia dos místicos.
Ao que ofusca,
o aceno;
ao que enrosca,
o degredo.
Reter o passo,
recolher no ócio
o espanto.
Ouvir o canto
da primeira trinca,
o pio agudo
nas rachaduras.
Estampido,
estilhaços sem rumo, resto de tudo.
Lançar-se aos cacos
─ fôlego dos dias.
Recolher a sombra,
a Musa,
a imagem bipartida.
Perseguir a identidade,
levantando as pedras.
MANUAL PARA O ALZHEIMER DE DEUS
Relembrar,
saber-se Ele.
Ao rés do espetáculo,
no átrio do templo,
tricotar o Verbo,
tirar as cartas,
recostar-se no tabernáculo
e arriscar um jogo da velha.
MANUAL PARA COLECIONAR MINIATURAS
Manter a sujidade dos escombros,
guardar flagelos.
(É na minúcia do cisco
que se esconde a verdade.)
Do perfil de um olhar
guardar o sentido oblíquo
do desejo,
a aparência dissimulada.
Nas folhas secas,
recortar hóstias.
(A verdade se guarda
na multiplicidade das cores.)
Moer o grão,
replantar a pétala,
revirar o torrão de terra,
triturar os ladrilhos,
desfazendo o reto
e as arestas que se fecham
à imaginação
e segregam os redemoinhos.
Da pausa da fala
recolher a dúvida
─ esta preciosa
relíquia da paz
entre os homens.
Do búzio, a memória
do burburinho secular
dos náufragos, das águas
remexidas, dos cântaros
das sereias, do betume
removido das Naus,
da batalha das baleias,
dos grilhões de negros
─ alforje de ouro ─,
de bergantins, canoas,
galés romanas.
Uma conta azul
do terço beato
(essa carga que transcende
─ névoa do inconsciente).
Nó de laço ─ aliança da angústia,
e o infinito ─ distendido ─ da dúvida.
MANUAL PARA FAZER BOLA DE GOMA DE MASCAR
A goma é urbana
─ ruminância humana.
Observar
os preceitos do bom uso
dos dentes,
da forma de mascar,
de sorver a abundância
da saliva,
remoer na mandíbula
e repousar sobre a língua.
(Dissimulada leveza
do Ser de vícios.)
Artificialidade do gosto
─ subterfúgio ─
do que é falso
e não mascavo,
borracha
e não morango.
Remexer, revirar,
mastigar o que não é hóstia,
aguardar o porvir do nada,
do sem gosto,
da palidez real
da hipocrisia.
Contorcer sobre as papilas
a massa amorfa ─
corrompê-la.
Pressionando no céu
da boca
o que não é estrela.
Espalhar a massa,
fazê-la translúcida.
(Apropriar-se da sacrossanta trindade
─ palato, dentes e língua.)
Cingir os lábios,
usar do fole,
de soprar velas,
dar suspiros.
Trazer do tórax
o ar quente
por estreitos caminhos
─ forjar destinos.
Dissecar a lâmina,
arremeter em fuga
o balão menino.
Expandir
a liberdade,
testemunhar o baque,
o estouro,
a impossibilidade do voo.
Sentir tombar sobre a boca
os restos, as sobras,
o restolho do sopro
─ a felicidade.
MANUAL ANTI-INSÔNIA PARA O
VIGIA NOTURNO DE CEMITÉRIO
Será pisar em terra plana,
rescaldo de festa e drama
ou solo santo,
recanto de relicários e pranto?
Ao longe serão almas dispersas
ou fogo fátuo, combustão de gás metano?
Quem sabe o boitatá
e seu brilho de corpo inteiro,
encarnação da alma penada
no portilhão da entrada?
(Como se chega —
contrito
ou hirto —
diz do assombro ou arrebatamento?)
Postar-se no portal,
bater o ponto,
medir a noite
de canto a canto,
relembrar que o inominável
reveste os ataúdes
passeia nas alamedas
— espia o crédulo.
entre os túmulos.
Noite de extravios,
reino oculto do além-trevas.
(A noite decide o nome
de seus filhos.)
O espasmo,
o eco do grito mordaz
corrompendo o silêncio.
Gatos pardacentos
— anjos dispersos,
som, uivo, vento,
o mais do nada,
uma celebração.
(No escuro
se fala às surdinas.)
Seja a marmórea desgraça
ou o abençoado descanso,
os mausoléus só existem
para os vivos.
Buraco de gente
encoberta,
escassez
de ternura.
Os corpos semeados
em jazigos também são obras do acaso
e se igualam em sua substância última
— não carregam nas moléculas
partículas de soberba.)
Enfim entender
e vestir-se de humanidade.
MANUAL PARA UM REPENTISTA DAS FACAS
Meu punhal tem duas faces:
a que brota e a que geme.
E se fico descontente
com o desatino do nada,
enfio de bucho adentro
a lâmina — minha enteada —
de face brilhante e inteira,
nos intestinos do cabra
essa miragem da gente
espelho que se fez máscara.
Meu punhal tem duas faces:
a que brota e a que geme.
E este, que sou eu mesmo,
no delírio do instante,
me enrosco na peixeira,
me aperto e estrebucho;
rogo apelo ao Satanás
com cara desesperada,
rogo apelo à Virgem Altíssima,
Mãe do nosso Salvador,
que perdoe a impertinência
deste imbecil pecador.
Meu punhal tem duas faces;
a que brota e a que geme.
Se a verdade de quem teme
é ser caveira no túmulo,
me remexo, avexado,
cruz em credo, desconjuro,
deixo o tinhoso de lado
me apego com o divino,
pois ser temente a Deus
é melhor que ser defunto.
Meu punhal tem duas faces:
a que brota e a que geme.
Arranco do ventre o aço.
De um trago bebo a maldita
do rasgo entorna o sangue
nas ventas, lágrima pinga.
A dor já não atormenta.
Cana boa me ilumina.
Tampo o rombo com fumo
bravo, e o corpo todo treme.
Meu punhal tem duas faces:
a que brota e a que geme.
A ferrugem do arado
que recortou minha carne
despejou pimenta ardida
que semeou meu destino.
Fiz que fiz minhas tontices
brotou em mim vil martírio:
me apequenar na vaidade
leme de tolos fascínios.
Meu punhal tem duas faces:
a que brota e a que geme.
O que corta, brota e fere
e tempera corpo e mente
não é fome desatada:
é gana que se ata à gente.
É comprar o que é nada
grilhão de osso e corrente
que se aferra — a ingrata —
nos miolos deste demente.
Meu punhal tem duas faces:
a que brota e a que geme.
Se me retiro, é desgosto
do mais que fiz nestes campos;
renego o que me é devido,
só cumpro com este canto.
O som com que me despeço
é cortante e sincopado.
Segue os caminhos das veias,
vem do rincão do pecado.
Na pele, deixei o repente.
Posso partir finalmente.
Meu punhal tem duas faces:
a que brota e a que geme.
MANUAL PARA OS AMANTES
COMPULSIVOS DA MUSA
Silêncio é o nome
do cômodo
— albergue do eremita.
À meia-luz,
o retiro das traças
pensas nas bancadas,
refúgio de ácaros,
recanto dos deuses.
(O inanimado palpita
e clama no papiro,
se derrama nas estantes
— umidade prenhe do folhear dos dedos.)
Ninho insalubre dos sonhos,
das guerras mundanas,
de paixões adúlteras,
do fingir sagrado,
da realidade humana
— do que estaria perdido —
dos tempos de tragédia
de personagens soberbos.
(O tempo mofo
e seu gosto de vida.)
Cravos-da-Índia, folhas de louro
repousam silentes
nos beirais do Bunker
protegendo o insólito.
Recostado, o corpo
— âncora da alma —
embebido nos odores
das histórias resgatadas
de naus, ventanias,
convulsões sociais,
de figuras transcendentes
e seres insignificantes.
A recordar, a revisar doutrinas,
anacronismos,
repisar caminhos inóspitos,
visitar autores carentes.
(Pisar a terra prometida
é o desejo do demiurgo.)
E tardar no inimaginável
Universo plástico da cena
de um entardecer
perene de um poema.
MANUAL DE QUIROMANCIA DE BOTECO
Por mais que se imiscuísse
e se intitulasse sóbrio,
a ferrugem da mesa, a cerveja,
as coisas pensas eram óbvias.
Mormente o enredo fluente,
o discurso de grandeza,
algo escapava:
uma urgência premente,
angústia de unhas roídas,
desgosto na fala
empastada,
ruidosa.
A fúria no gargalo,
a inquietação das pernas,
o desmedido das horas,
o olhar de espera,
nostálgico e umedecido,
disperso no ermo da rua.
(A linha interrompida
é razão pura.)
E mais um traçado, um rabo de galo,
um conhaque nesse desapego
ao correr da noite,
na vala do dia.
MANUAL PARA INTERPRETAR
OS SONHOS QUE SE TEM ACORDADO
Em que ponto se chocam
lembranças e sonhos?
É como um resgate desesperado
de uma ilusão
─ o sonho desperto,
inconcluso,
que se tem perdido
no silêncio íntimo.
Faísca de surpresa,
delírio,
alívio no cotidiano
de enlatados,
poro de dissipar
rotina, vapor
do sobrenadante
da pele.
Surpresa
a emperrar o motocontínuo.
Sonho é algodão-doce,
eco de aplausos,
rudimento de esteio
de pousar infortúnios.
Anzol de fazer loucos,
frustrados.
(Sonhos se ruminam
e crescem.)
Tomam espaços, apropriam-se,
tornando indelicado
e vago, o que mente
estar presente
na dimensão do supérfluo e
atarracado engano.
Epifania analógica
em Mundo digital,
o sonho se vende ao mascate
que prende a sete chaves.
Sonho, derrocada
do anjo prostituído,
pedestal do manso,
alicerce do infante.
Sonho-elefante,
viseira e estúpido,
multiplicador de enganos
apregoando o inútil.
Sonho, simples acaso
de um poema,
derradeira lembrança
que se aconchega na despedida.
MANUAL DA NOBRE ARTE DO DESENCANTO
Há prazer nas escaras
do desencantado?
Sentimento de mártir:
cravar estacas
e chamá-las
: realidade.
MANUAL ACALORADO DO ESPÍRITO
Demônios, aflorai na pele morta
dos que se olham e se desprezam.
O molho de chaves serve
a uma única porta
sem propósito
— desperdício.
Demônios, padrinhos
desprezados,
calor de minha alma,
rota sem rumo ou abrigo.
Movam a taça
no beiral da sanidade.
Cessem a verdade,
— resma de dúvidas.
(Morra absolutamente
a consciência do tempo,
o transitório alívio,
o desentendido lapso
da razão,
o deslumbramento.)
A paz de demônios,
é o que nos rege,
ou o que ignoramos?
A paz é alicerce
ou privação,
remanso?
Agir, demônios, agir!
Não ter na culpa o embuste.
(Os mortos ignoram
as fuligens e as traças.)
E, se houver vingança,
será de outra tez pálida,
a continuar o traço
e a falácia humana.
Despertem, demônios,
eu os escuto,
e introduzo o que resta,
esta lentidão das palavras mortas,
este ócio, este vulto,
este desapego.
MANUAL ELEMENTAR PARA
UM WATSON PÓS-MODERNO
Basta entender
as evidências:
rastros, restos,
suspiro último
— sobrevivência.
Testemunho do bruto,
do absoluto retorno
às entranhas.
Um homem sob um
homem sob
um homem
— submerso.
MANUAL PARA DEPERTAR
Guardar os corpos na memória,
desfazer a ilusão
de que se constrói sobre flores,
pois são mártires
e escombros, e fuzis,
e ferozes trombetas do infortúnio,
e um sentimento
de tentar entender o tempo.
MANUAL CRIACIONISTA —
UMA PROBABILIDADE DE DISTOPIA
(Cada esforço
corresponde ao abandono.)
Meio olhar sobre cada dorso
— dúvidas do poente.
Amarras da História
atadas aos calcanhares
do que seria um Anjo,
não fosse o pavor crescente
do repouso na bruma,
do assobio do Absoluto.
Meio bote da serpente
no primogênito do corvo,
e, sendo o coito e o veneno
a mistura da Besta nas ancas
da virgem,
resta o blefe do degredo,
o rolar do pecado
e seu bafo de morte.
MANUAL DO SER DIVINO
O mais das vezes
este excesso,
esta fartura,
— entusiasmo de merda —
esta ruína,
deslumbramento,
suspensório
para não arrear o escroto
ser de vidro
na fogueira do Inferno.
MANUAL DE LEITURA DO SEXTANTE
Mar, infinita figura dos desterrados,
recorta a tristeza, esfacela a vida
sobre os rochedos
e resgata em suas praias
os sem-propósito
— esses iguais em desespero.
MANUAL DE ATUALIZAÇÃO DO EREMITA
(Estamos próximos da solidão,
inconscientes dos mamutes.)
No frio extremo,
no calor exasperado
da tormentosa rotina, ficamos engalfinhados
com luminosos espelhos
de postar nuvens
e forjar encantos.
Na fornalha dos sós
replicados sem trégua,
a compreensão é um embuste,
e os crédulos,
em seu fastio de prazer,
seguem adormecidos
no catre
da profunda caverna,
perseguindo sonhos
no olhar das trevas.
MANUAL PARA MOLHAR A PALAVRA
"A palavra é já minha única maneira de ressuscitar-me".
Maiakovski
Palavra é fatalidade,
cerol escorrido da garganta do Mundo,
febre de tecer morte doida,
companheira irrecusável.
Palavra é troço sem fundo,
semente que brota
na fenda do punhal.
Palavra é o soldo
da boca carente,
vapor do submundo da alma.
Palavra é calma e destempero,
jazigo, ruína e culpa.
Palavra é sina do desencontrado,
recado e arrependimento,
é o unguento
do trago.
Palavra é zelo
com o indomável.
É o todo inacabado
às vésperas do último engasgo.
MANUAL SOBRE FERROLHOS DA PORTA DE SAÍDA
E se cortasse os pulsos
contornando o silêncio?
Morreria ou se transformaria
em outra ilusão?
Materna sombra,
degredo dos santos,
cama de ossos
e assombros,
de perdas e segredo
da alma buliçosa.
MANUAL SOBRE MANUAIS
No fim, resta o desgaste das palavras
empobrecidas pelo reúso,
os retalhos repetidos na colcha
que mal cobre o cansaço dos pés.
[Poemas do livro Manual para estilhaçar vidraças. Cousa, 2021]
junho, 2021
Jorge Elias Neto (1964) é médico, pesquisador e poeta. Capixaba, reside em Vitória/ES. Publicou Verdes versos (Flor&cultura, 2007), Rascunhos do absurdo (Flor&cultura, 2010); Os ossos da baleia (Prêmio SECULT 2013); Breve dicionário poético do boxe (Patuá, 2014); Glacial (Patuá, 2015); Cabotagem (Mondrongo, 2016); Breviário dos olhos (Edição do autor, 2017); O ornitorrinco do pau oco (Cousa, 2018), Sonetos em crise (Mondrongo, 2020) e Manual para estilhaçar vidraças (Cousa,2021).
Mais Jorge Elias Neto na Germina
> Poesia