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ALTER-RETRATO
Vagando
as ondas
o tule
do mar
do extremo amor
devolveu
a cabeça do querubim perdido
o tempo nascia
naquele mar que ia e vinha
viram teu torso
um desenho
costurado à linha do horizonte
te aguardarei menino
quando retornares com o tempo
tuas cicatrizes
teu corpo
DESTERRO
Nem mar nem pedra: são um corpo
sim
são dois corpos
adormecidos viajantes
que o mar escuro e revolto recolheu
que o mar escuro e revolto reconhece
suas vestes
seu sono
como um guardião dos dias e das noites
sem nome nem rosto
as águas negras como num sonho
abraçam os náufragos que retornam
adormecidos pelo mar agora
um tecido pontilhado sobre o algodão marítimo
____a areia os acolhe
como a terra imaginária que ficou para trás
não trazem bagagem
apenas seus corpos
seu amor
sua solidão testemunhada pelas mesmas águas
que carregaram seus corpos e
sua memória
seu esquecimento
e vão deixando que sonhem
um som de conchas sonoras
uma cesta de peixes saltando
um afago de algas
estrelas cadentes
ondas e
a espuma rítmica de ulisses
até que despertem
salobros anjos
estranhos
perplexos
UM GRÃO DE AREIA COBRE O MEU CORPO
O caminho toca o chão
Superfície da superfície
Voo líquido
Intervalo remoto
Passagem onde corre
O rio
Da minha alma
O rio
Como um rio
De um tempo
De um chão
Qualquer
Vastidão
BORBOREMA PEDRA-ENCANTADA
Atravessei 5000 anos
Na pedra do ingá
Atravessei seus guerreiros
Órion com seus luminares
Atravessei antigos oceanos
Agora adormecidos
Na quietude da terra atravessei mulheres
As mulheres
Com seus cabelos ensolarados
Com suas marcas gravadas
Volutas fios ancestrais
Sobre o coração
Atravessei meu corpo
quando meus dedos
tocaram o sol dessas pedras
onde as deusas me atravessaram
gravando seus uivos
Em um tempo
próximo
em um tempo
longínquo
E adormeci
SENHOR
Que as nossas vacas andem prenhes
e as ovelhas plenas de lã
que a chuva prepare a terra
no estrume pungente da manhã
e fecunde os campos
Senhor dai-nos o canto
dos doidos desenganados
dos lobos esganiçados
e os frutos senhor
bicados marcados apodrecidos no chão
em que os pássaros os estranhos pássaros
revolveram exalando semeando
transpirando latejando
revirando a terra
em busca de outro amanhã
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março, 2021
Jussara Salazar. Escritora e artista visual. Publicou Inscritos da casa de Alice [1999]; Baobá, poemas de Leticia Volpi [2002]; Natália [2004]; Coraurissonoros [Buenos Aires, 2008]; Carpideiras [2011, com a Bolsa Funarte, ficando entre os finalistas do Prêmio Portugal Telecom na edição de 2012]; O gato de porcelana, o peixe de cera e as coníferas [2014], Fia [2016], Corpo de peixe em arabesco [2019] e O dia em que fui Santa Joana dos Matadouros [prêmio Hermilo Borba Filho de literatura 2020]. Tem sua obra publicada em diversas revistas e traduzida para o inglês, o francês, o espanhol e o alemão. É doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC/São Paulo e mestra em Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná.
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