©micha sager

 
 
 
 
 
 
 



ALTER-RETRATO



Vagando

as ondas

o tule

do mar

do extremo amor

devolveu

a cabeça do querubim perdido


o tempo nascia

naquele mar que ia e vinha


viram teu torso

um desenho

costurado à linha do horizonte


te aguardarei menino

quando retornares com o tempo

tuas cicatrizes 

teu corpo







DESTERRO



Nem mar nem pedra: são um corpo

sim

são dois corpos

adormecidos viajantes

que o mar escuro e revolto recolheu

que o mar escuro e revolto reconhece

suas vestes

seu sono

como um guardião dos dias e das noites

sem nome nem rosto

as águas negras como num sonho

abraçam os náufragos que retornam

adormecidos pelo mar agora

um tecido pontilhado sobre o algodão marítimo

____a areia os acolhe

como a terra imaginária que ficou para trás

não trazem bagagem

apenas seus corpos

seu amor

sua solidão testemunhada pelas mesmas águas

que carregaram seus corpos e

sua memória

seu esquecimento

e vão deixando que sonhem

um som de conchas sonoras

uma cesta de peixes saltando

um afago de algas

estrelas cadentes

ondas e

a espuma rítmica de ulisses

até que despertem

salobros anjos

estranhos

perplexos







UM GRÃO DE AREIA COBRE O MEU CORPO



O caminho toca o chão

Superfície da superfície

Voo líquido

Intervalo remoto

Passagem onde corre

O rio

Da minha alma

O rio

Como um rio

De um tempo

De um chão

Qualquer

Vastidão 







BORBOREMA PEDRA-ENCANTADA



Atravessei 5000 anos

Na pedra do ingá

Atravessei seus guerreiros

Órion com seus luminares

Atravessei antigos oceanos

Agora adormecidos

Na quietude da terra atravessei mulheres

As mulheres

Com seus cabelos ensolarados

Com suas marcas gravadas

Volutas fios ancestrais

Sobre o coração

Atravessei meu corpo

quando meus dedos

tocaram o sol dessas pedras

onde as deusas me atravessaram

gravando seus uivos

Em um tempo

próximo

em um tempo

longínquo


E adormeci







SENHOR



Que as nossas vacas andem prenhes

e as ovelhas plenas de lã

que a chuva prepare a terra

no estrume pungente da manhã

e fecunde os campos

Senhor dai-nos o canto

dos doidos desenganados

dos lobos esganiçados

e os frutos senhor

bicados marcados apodrecidos no chão

em que os pássaros os estranhos pássaros

revolveram exalando semeando

transpirando latejando

revirando a terra

em busca de outro amanhã





março, 2021



Jussara Salazar. Escritora e artista visual. Publicou Inscritos da casa de Alice [1999]; Baobá, poemas de Leticia Volpi [2002]; Natália [2004]; Coraurissonoros [Buenos Aires, 2008]; Carpideiras [2011, com a Bolsa Funarte, ficando entre os finalistas do Prêmio Portugal Telecom na edição de 2012]; O gato de porcelana, o peixe de cera e as coníferas [2014], Fia [2016], Corpo de peixe em arabesco [2019] e O dia em que fui Santa Joana dos Matadouros [prêmio Hermilo Borba Filho de literatura 2020]. Tem sua obra publicada em diversas revistas e traduzida para o inglês, o francês, o espanhol e o alemão. É doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC/São Paulo e mestra em Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná.


Mais Jussara Salazar na Germina

> Poesia