O QUE NÃO FICA
É uma cidade grande
o homem que segura a porta do elevador.
Do térreo ao décimo terceiro andar
não corremos risco de ouvir
o assovio da paixão.
Desconhecido é o seu nome.
Quanto a mim,
volto a servir chá de camomila para a solidão.
É COM VOCÊ QUE FALO
O amigo oculto não me surpreende mais.
E olho fora do corpo a cara da manhã:
meu consolo vem em fatias de queijo muçarela
guardanapo marcado de batom e lágrimas.
Quando pensava que aquela seta viria definitiva,
descubro que ela está em todas as praias.
Não saio ilesa de nenhum naufrágio.
FÁBULA
Hoje me lancei no mar
e desejei que um salva-vidas forte, 1,92,
me tirasse dali bem devagar. Nada aconteceu.
Continuo nadando,
entre árduas e anônimas braçadas
deste solitário labirinto de águas, sal,
nunca do entendimento.
Sou este peixe que se contorce,
solidário, exausto, mas não assa.
FACE A FACE
E se o filho de Deus fosse meu amado?
Os punhais afiados
ante a sedução transparente
seriam os mesmos?
E se o filho de Deus desse os passos
que eu filha de Rorlando e Maria não aprendi a dar,
a gaivota ou o simples beija-flor
chegariam à janela do apartamento 609?
E se o filho de Deus me tirasse
os lobos, a serpente, as maçãs
sem frescuras, dor, espantos
o amor teria cara de anjo?
POEMA À MODA DE SHAKESPEARE
O meu feio Romeu não me reconhece mais.
O tempo envelheceu aquele corredor de lua,
no amplo apartamento do Jardim Botânico
quando inundada de estrelas o esperava.
Adorava meus pés,
mas naquele 27 de janeiro de 2011
sequer olhou para os sapatos que eu usava.
Tinha mania de me fotografar deitada.
Nunca levou nenhum negativo.
Se revelava inteiro dizendo de cor
os poemas de amor de Castro Alves.
Tive todos os motivos de ser feliz
naqueles braços magros,
em cima daquele homem liso, sem pelos.
TERCEIRO POEMA DA FALTA
Uma vez acreditei que aquele feijão
cozinhando em fogo baixo era uma trégua:
podia rir do sofrimento e reverenciar a primavera.
Não deixei que o concreto da cidade grande
acabasse com as rachaduras da infância:
impossível roubar tangerinas sem deixar a marca do cheiro.
Se acumulei noites e amadureci definitiva
foi por culpa das asas antecipadas,
da mania de recontar histórias.
Minha mãe dizia:
atravesse uma dor de cabeça erguida.
Eu atravessava.
Nunca corri da chuva.
Desconfio que as raízes da resistência materna
ainda me vigiam.
MERCADO DE TRABALHO
Quando o insuportável começa a virar maré cheia,
me pergunto:
por que não me tornei alpinista de empresa
escalando os prédios mais altos da Avenida Rio Branco?
Quatro anos de Letras,
mais dois de Pós em Literatura Portuguesa,
o curso completo de inglês no IBEU,
não permitem que a mesa do café seja invadida
de iogurtes, queijo branco, uvas, kiwi, pêssegos,
mamão com mel.
Por que não me especializei em alturas?
Uma estrofe de cor dos Lusíadas,
não é suficiente para o trabalho de call center
na empresa Silva Lins.
Era preciso ter um diferencial na voz.
Mas eu disse um verso de Camões.
E a menina ao meu lado,
estudante de Propaganda e Marketing na Estácio,
saia justa, corpo bronzeado de Ipanema,
um quê de rouquidão forçado no final das frases,
sai com carteira assinada e setecentos reais por mês.
CERTO LIRISMO CONFESSIONAL
Nunca digo eu.
Nem sou uma pessoa passada a limpo.
Gosto de avessos,
mas coleciono cadernos, de preferência azuis.
Quando coloco no papel um verso razoável,
a folha tem lições de borboletas, de plantas raras.
Se o poema nasce desse branco, se tem cheiros,
ou respingos de um roxo avermelhado
é que para escrever me aposso do que é tão comum:
pássaro, memória, mar.
Depois dou as mãos para a criança
que ainda me habita,
e roubo lírios no jardim vizinho.
CIDADES
Durante anos tentei estabelecer contigo
uma aliança vazada de sol.
Consenti farpas, encantamentos,
te tomei das grandes águas.
Depois nadei serenamente
na direção da sedução mais sutil.
Quando te vi presa aos pertences do mundo calei
para aceitar teu pátio,
tua forma de me tocar com palavras claras.
Durante anos fundei cidades na tentativa
de que o amor pudesse construir a casa.
E todos esses anos é a escrita do poema
que estabelece comigo uma aliança.
JAIME
O que era dele e me permito guardar é tão pouco:
suas fases de cordeiro e lobo
me faziam desejar
uma ressurreição antecipada.
Quando era o lobo a me atingir
sabia navegar em outras águas
Quando era o cordeiro,
o mínimo bastava.
Por nove meses nunca fomos felizes.
Fui eu a me livrar da secura,
de algumas setas dilacerando o corpo.
Saí daquela casa sarada de espantos.
Nunca mais tive notícias do lobo.
RECOMENDAÇÕES:
Fiquem em casa.
Desta janela não há frestas para espreitar o mar.
Nem consigo ser inteira.
A falta não é dos braços que me davam vida,
mas quando podia abrir a porta de um jeito livre.
Abrir agora tem custos, culpa.
Não saiam.
O poema precisa ser trampolim de algo
que derrama por dentro
e pega minha mão esquerda sem luva
que desliza quase cisne
diante da palavra sem medo.
NAS CURVAS DO POEMA
É próprio do poeta andar em círculos,
atravessar abismos como se houvesse
mistérios redobrados na flor, no vento.
Há poemas que fazem curvas
no papel que embrulha o pão
e outros seguem retos, inomináveis,
porque têm o verbo necessário.
Na odisseia cotidiana que vivemos,
o tempo é testemunha e prova circunstancial
que o poeta ainda se submete a uma vigília extrema:
resgatar o oceano de uma palavra.
dezembro, 2021
Lila Maia é maranhense e vive no Rio de Janeiro. Poeta, pedagoga. Escreveu os livros de poemas As maçãs de antes (vencedor do Prêmio Paraná de Literatura/2012 - Prêmio Helena Kolody de poesia e semifinalista do Prêmio Telecom Portugal de Literatura/2013, hoje Prêmio Oceanos); Céu despido (2004, vencedor do II Prêmio Literário Livraria Scortecci/SP); A idade das águas (1997). Em 2013 ganhou o Prêmio Infantil Coleção Vertentes, da Universidade Federal de Goiás com o livro Caixa de guardar amor. Em 2015 ganhou o Prêmio Juvenil da Universidade Federal do Espírito Santo com o livro de poemas O coração range sob as estrelas. Participou das antologias poéticas Amar Verbo Atemporal (Rocco, 2012), Sete vozes (Editora da Palavra, 2004) e Próximas palavras (Editora da UERJ, 2003, organizada e com apresentação do poeta Ferreira Gullar). Tem poemas publicados na Revista Poesia Sempre da Biblioteca Nacional.
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