Nascer é um incêndio ao contrário
Não há rosto possível para mim
nada se oferece à deriva deste segredo
a possibilidade de um gesto no escuro
estando a sós com o infinito
me escoro numa travessia de sede
e aprumo aquele gole d'água de que o poeta
falou, longínqua no percurso da palavra
que oferece senão a ganância da expressão
encontro nos olhares o exílio correspondente
àqueles que trazem o barro de sua terra perene
tão vívido quanto a nudez do agora
para os que já não se afiguram à paisagem
para os sem território
para aqueles deitados no poente
que sabem a noite e o marcapasso
tornei a cortar meus cabelos
a encarar no espelho a ruptura diária
diáfanos dias, como a lágrima que
em sua salinidade e transparência
perscruta uma emancipação
não há desenho de onde estou
não há silhueta que me recorte
não há fora nem há dentro
não há viagem
me abrigo entre os sem voz
os sem esperança
os que continuam a vagar
cansados deste sonho lúcido
vívidos de outra ordem
entregues aos vestígios de uma vida
que escorre e lança seus peixes
numa entrega sem aras
porque também já não se encaixam
nos mecanismos de nenhum sonho.
Sem rosto, me despeço
do não lugar que rejeita a marca
dos meus passos, ouso pensar
a folha seca como um mapa
e o mundo inteiro
como filho da nuvem
e do orvalho
Povoada de abismos
lenta é minha queda até a aurora
poroso e etéreo como a visão
em sonho já contaminada
pela memória do despertar
assim é minha hora
A árvore seca
e sem sombra me ilumina
como o cadáver da infância
esculpido no silêncio
do copo, no lado opaco do espelho
onde meu olhar encontra
não mais 'a semelhança'
mas o eco de um segredo
misterioso e cúmplice
meu corpo segue, estranha fidelidade
ao jardim que será coberto pela vegetação da Serra
se levanta, come, bebe, sorri e erra
até que diante do clarão
se dissolve na chama,
do que jamais se encerra
[Escrito com Roberta Tostes Daniel]
Meditação sobre a língua portuguesa escrita no futuro
Para os sobreviventes da Aldeia Tekoá Pyau
1.
Sim ela é fascista
todos sabem
que o real é impossível com a linguagem,
ela não é como o ar
e seus anjos
que sobrevivem através da invisibilidade
como os moradores de calçada
obscuros e transparentes
como o vento:
A linguagem é um outro
tipo de demônio
e a verdade,
esta falsa ontologia
do silêncio,
não o inacessível
mas algo que já foi tão belo quanto…
o veludo-pétala de um bebê guarany
na luz dos olhos que sabem sem razão
e conhecem o halo
que mora no terror-tremor
que não se dissolve no tempo
carapaça que a língua não
cansa de tentar decifrar
como a luz da lanterna
do caçador
no amarelo da neblina
iluminando
um carro encoberto por folhas, raízes e galhos
assim termina
a Vida das palavras
na insuficiência
do dizível
longe de suas terras
como esta índia sentada na calçada
como o cão-orquídea-onça
Eles
não ignoram a força destruidora
que dorme
na fragmentação desse abraço
na água
evocando o mito da completude
Nem a violência naturalizada
na violação dos pensamentos
dessa árvore sem códigos
de barra,
como nossos olhos
percorrendo o fogo velado
dos corpos assassinados
como nós
que não os vemos mais
enquanto nos dissolvemos
são como fotografias de galáxias
por dentro
do ventre
de outra língua
que falávamos
antes do desaparecimento
3.
Os mundos por dentro
tornavam difícil
que
dois corpos
por tudo
falsamente
separados
Que sejam como um
por causa do destroçamento da flor
apartada do segredo
da infindável fome
dos ricos
Já não distinguem
a vida
em um dia,
sem conseguir
vencê-lo
como o vence
o cão
O sagrado transparente
O sagrado respira dentro dos sonhos com seu corpo hierofânico, certamente é diluído quando codificado e esquadrinhado. É algo que inversamente deveria diluir a linguagem em um alfabeto de visões do estranho códice autônomo do mundo. Somos possivelmente seus vasos comunicantes. É uma floresta porosa de visões para o animal da chuva, por exemplo. OS CANTOS DE MALDOROR e certas passagens de UNE SAISON EN ENFER ajudam na migração das imagens do entressonho e por isso são sagrados. Mas isto se expande e contamina a mão que escreve e pode pensar por si mesma e assim iniciar a instauração desse corpo.
Os mortos não necessitam de silêncio, eles se dissolvem nele. Os mortos como vemos nos cantos do Purgatório de Dante: amam a música. O silêncio nos vivos pode ser uma das estratégicas antimáscaras do esquecimento. Pulsão ilusória de fuga interior escondida dentro do 'sair para fazer compras' que não cancela a derrisão.
De névoa parece ser feito o corpo do anjo da história, nada deixa entrever daquilo que realmente está por trás dos fatos, a terra parece desejar a superação do humano e nisso ela concorda com as máquinas e os microorganismos, estamos lentamente nos aproximando da consciência das plantas e dos fantasmas? Talvez a própria névoa 'pense' no fim da hierarquia dos fatos criada pelo humano, algo a ser superado por si mesmo, não percebemos que para a maioria o anjo da história se confunde com o anjo da morte?
Se
Se Todo ser é pluri- ou multimodal, ou seja, existe de diversos modos: corpo, alma, fenômeno, coisa, etc.
Então não somos
E aquela fala do Coronel Kurtz/Marlon Brando em Apocalipse Now?
Era o Sweet Bird of paradox contornando
Conversa com Emily Dickinson
Impossível esquecer
a presença herbária
maior que uma força,
que foi ali
uma alegria rara
disso ela jamais guardou segredo
delatadando o silêncio de um mundo
mais profundo
do que este incompleto relevo.
Antiprece
dissipa a névoa porque nenhuma palavra consegue entrar,
você foi um peixe nadando dentro de um pássaro, dos pássaros,
o paraíso que esteve nos olhos de quem o viu,
floresta em volta do teatro,
anjo do lençol freático
procurando o curso dos silêncios
cancelando a necessidade de haver pessoas
em troca da imanência de todas as árvores que andam,
agora vai começar o deus
na fotossíntese do caracol
a fotossíntese no lugar do orgasmo
ou seja, a morte
du scribe égyptien
escrevendo sempre e sempre uma carta sem fim para o amado-amada que rege a orquestra do ar, o encanto da vida é a impossibilidade de uma descrição-definição, a imprecisão do antes e do depois alojada em nossa memória "do futuro" _________ Estamos em algum lugar fora do tempo onde as multidões lutam com "o lado de fora do nome" para negar o eu que é um outro e também o eu que não é um outro, ela toma partido "da sonolência das imagens" _________ Ele pretende "desertar do próprio rosto outra vez" para que o nome se torne o nada que é e seque na chuva "de alteridades" ___________ o mundo observável se dissolve no mundo vivível sem a nitidez que o tornaria legível ___________ de acordo, mas, fiquemos neste mundo, sendo outros,
Evandro Carlos Jardim
A razão de ser da linha
está em cada um de nós
A linha não existe
sem uma direção
seu destino
é sempre o objeto
o objeto é sua razão
A linha não nos engana
como a harmonia que
discernível na forma
se esconde
na construção
do desenho
que somos
existindo com
o mundo
como a eternidade
existe em um segundo.
Carl Sagan visita o túmulo de Holderlin
Os deuses são alegorias do humano
Os humanos caricaturas impotentes dos deuses
Haverá em outro século a consciência que nos livrará deste senso comum sem espaço comum
das grandes cidades, dos deuses, do Deus
E se as ideias que criamos do amor
se revelarem insuficientes para amar a existência?
Amantes tentarão em vão fugir do tempo
em que estão para dissolver os sonhos
no desejo invencível de uma realidade
onde será nítida a proximidade
entre o movimento da espuma e o das explosões solares
entre as estrelas cadentes e os olhos fechados
durante o beijo
O começo
O de 'É isto um homem?'
é a demarcação de um território
imunológico
com validade determinada
pelo tempo de alguns livros
dentro deste
O de 'O homem sem qualidades'
é a evocação de um distanciamento
entre o pensar e o existir
cuja duração elide a miséria objetiva
em nome de uma ontologia
O do 'Cântico dos cânticos'
Converte a imanência em uma metáfora
Entre a terceira frase e a quarta
O de 'Da sebe ao ser'
guarda o som de uma mão
batendo na porta
O de 'The Sick Bag Song'
é a reconstituição de uma partitura
de lágrimas
O do 'Grande Sertão: Veredas'
é um olhar que escutando se arma
em alteridade e fluxosombra
[Poemas do livro inédito A água veio do Sol, disse o breu]
junho, 2021
Marcelo Ariel é poeta e ensaísta. Autor de Tratado dos Anjos Afogados (Letra Selvagem ), Com o Daimon no Contrafluxo (Patuá), Ou o Silêncio Contínuo — poesia reunida 2007-2019 (Kotter), Nascer é um incêndio ao contrário (Kotter, 2020) e Subir pelo Inferno, descer pelo céu (Kotter, 2021), entre outros. Atuou como ator/roteirista no filme Pássaro Transparente, de Dellani Lima, e gravou o disco de spoken word Contra o nazismo psíquico com o Projeto Scherzo Rajada. Atualmente, coordena cursos de filosofia e escrita em São Paulo e prepara o livro de ensaios A hiperinclusão — processos de cura da ferida colonial e a novela A Vida de Clarice Lispector.
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