©susanne jutzeler

 
 
 
 
 
 
 

Todo o peso



carrego nos ombros

curvados pelo pranto

o peso de dores órfãs


uma âncora oxidada

um balde de água

uma mala de chumbo


todo o peso deste mundo

não pesa um grão de areia

do deserto que me habita.







Compulsão



o amor me deixou

segurando as sacolas

na fila do caixa


depois de chegar

em casa reparei

os itens e preços


e quase tudo era

rótulos supérfluos

extravagância dos olhos


exceto uma massa

de bolo um quilo de sal

e uma faca inoxidável.







Rixa



não vejo as palavras

como espuma ou pétalas

nem como aço ou brasas

porque seu peso e nit

têm a estirpe do silêncio


o meu medo não consiste

em que elas se desgastem

na cronologia das línguas

na surdez dos incrédulos

mas que deste seu súdito

se desgostem e se apartem


eu quero uma palavra

nova intacta e físsil

para desfazer o mundo

porque o ofício do poeta

é rivalizar com Deus.







Janela velha



Eu sou apenas uma janela velha,

impregnada de fortes manchas,

esculpidas pelo sol e pela chuva.


Nela só cabe um par de olhos

a espiar um mundo quase caduco

que lá fora soluça os seus males.


Pelo lado de fora ninguém nota,

pelo lado de dentro só eu vejo,

em tons cinzas, bem é verdade.


Uma janela velha entreaberta,

nem se abre, nem se fecha,

já perdera o bom ferrolho.


Mas o grande mal dessa janela

não é ela ou sua pobre madeira,

é a vida, essa casa malcuidada.







Minguante



A infância perdida da memória.

Os sonhos esquecidos numa gaveta.


Os filhos — emancipados — mundo afora.

A saudade lagrimando frente ao espelho.


As horas que se esgotam no crepúsculo.

As obras que se evaporam à luz dos olhos.


A esperança navega sem bússola.

A vida que se esgota a cada ciclo.


Tudo se prostra diante do tempo.

Então uma dúvida salta do armário:


Não seria a morte a perfeita vida

para a qual ainda não nascemos?


Ou seria a vida já a própria morte,

sendo vivida de dentro para fora?







Mineração



sequei rios, sangrei nuvens,

abri crateras dentro de mim

minerando areia movediça

com a cabeça para baixo.


gastei as minhas forças

peneirando rochas ao vento.

como lírios se abrindo, vi

o brilho das esmeraldas.


como sangue escorrendo,

vi os sonhos se diluírem

na ambição dos olhos.


a vida me foi um garimpo

e todo o ouro que juntei

foram memórias e malária.







Moeda



à luz do dia

minha cidade

é uma bela jovem

vendendo jornais

e livros no stop

do semáforo.


ao véu da noite

essa mesma cidade

é uma cadela no cio

uma prostituta de luxo

traficando AIDS

a altos executivos.







Teseu



E Deus criou este mundo

tenebroso e confuso

como labirinto da alma

humana, e deu a ela

uma armadura feita

de carne, osso e sangue.


Quando a alma achar

a saída, estará redimida

dos seus pecados e enganos.

Sairá vitoriosa do palco

deste espetáculo trágico

e cômico, ascenderá

ao Olimpo, limpa de tudo.







Meu eu, meu ai



tudo que em mim fala

é silêncio é cilada

de fantasmas que me povoam


tudo que em mim habita

é ardência e súplica

de desertos querendo chuva.







Só tenho olhos para o leste



o pôr do sol:

um poema

cor de púrpura


trazendo à tona

o peso do tempo

os grãos das perdas


então dou as costas

à tarde que expira

soluçando abismos


e abro meu álbum

de delitos, num rito

de rejeição à culpa


porque para mim

o horizonte

é útero materno.







Lentes binoculares



o que captam os olhos

de um poeta idólatra

à beira de um poço ateu?


o eco da pedra suicida

o silêncio imo da água

com sede de ver o sol?


ou um céu subterrâneo

onde morcegos são anjos

aprisionados, e o diabo

é quem puxa a corda?


o que avista um poeta

debruçado numa janela

escancarada para o nada?


a falência da vida

a inércia dos mortos

um pássaro sem céu

ou um céu sem pássaros?







Poesia alada



talvez os poetas

sejam pardais

das manhãs perdidas

de uma infância

abreviada


e têm mania

de cantar

enquanto

catam palavras

de tudo aquilo

que fica extraviado

no silêncio


aos pardais

e aos poetas

ser nada é tudo

que lhes basta!

 



setembro, 2021



Neurivan Sousa é poeta e professor, natural de Magalhães de Almeida/MA (1974), mas radicado em Santa Rita. Membro fundador da Associação Maranhense de Escritores Independentes (AMEI) e Membro Correspondente da Academia Itapecuruense de Ciências, Letras e Artes (AICLA). É autor de Lume (2015), Palavras sonâmbulas (2016), Minha estampa é da cor do tempo (2018), da trilogia infantojuvenil O pequeno poeta, e do infantil Ribamar, o menino peixe.


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