Todo o peso
carrego nos ombros
curvados pelo pranto
o peso de dores órfãs
uma âncora oxidada
um balde de água
uma mala de chumbo
todo o peso deste mundo
não pesa um grão de areia
do deserto que me habita.
Compulsão
o amor me deixou
segurando as sacolas
na fila do caixa
depois de chegar
em casa reparei
os itens e preços
e quase tudo era
rótulos supérfluos
extravagância dos olhos
exceto uma massa
de bolo um quilo de sal
e uma faca inoxidável.
Rixa
não vejo as palavras
como espuma ou pétalas
nem como aço ou brasas
porque seu peso e nit
têm a estirpe do silêncio
o meu medo não consiste
em que elas se desgastem
na cronologia das línguas
na surdez dos incrédulos
mas que deste seu súdito
se desgostem e se apartem
eu quero uma palavra
nova intacta e físsil
para desfazer o mundo
porque o ofício do poeta
é rivalizar com Deus.
Janela velha
Eu sou apenas uma janela velha,
impregnada de fortes manchas,
esculpidas pelo sol e pela chuva.
Nela só cabe um par de olhos
a espiar um mundo quase caduco
que lá fora soluça os seus males.
Pelo lado de fora ninguém nota,
pelo lado de dentro só eu vejo,
em tons cinzas, bem é verdade.
Uma janela velha entreaberta,
nem se abre, nem se fecha,
já perdera o bom ferrolho.
Mas o grande mal dessa janela
não é ela ou sua pobre madeira,
é a vida, essa casa malcuidada.
Minguante
A infância perdida da memória.
Os sonhos esquecidos numa gaveta.
Os filhos — emancipados — mundo afora.
A saudade lagrimando frente ao espelho.
As horas que se esgotam no crepúsculo.
As obras que se evaporam à luz dos olhos.
A esperança navega sem bússola.
A vida que se esgota a cada ciclo.
Tudo se prostra diante do tempo.
Então uma dúvida salta do armário:
Não seria a morte a perfeita vida
para a qual ainda não nascemos?
Ou seria a vida já a própria morte,
sendo vivida de dentro para fora?
Mineração
sequei rios, sangrei nuvens,
abri crateras dentro de mim
minerando areia movediça
com a cabeça para baixo.
gastei as minhas forças
peneirando rochas ao vento.
como lírios se abrindo, vi
o brilho das esmeraldas.
como sangue escorrendo,
vi os sonhos se diluírem
na ambição dos olhos.
a vida me foi um garimpo
e todo o ouro que juntei
foram memórias e malária.
Moeda
à luz do dia
minha cidade
é uma bela jovem
vendendo jornais
e livros no stop
do semáforo.
ao véu da noite
essa mesma cidade
é uma cadela no cio
uma prostituta de luxo
traficando AIDS
a altos executivos.
Teseu
E Deus criou este mundo
tenebroso e confuso
como labirinto da alma
humana, e deu a ela
uma armadura feita
de carne, osso e sangue.
Quando a alma achar
a saída, estará redimida
dos seus pecados e enganos.
Sairá vitoriosa do palco
deste espetáculo trágico
e cômico, ascenderá
ao Olimpo, limpa de tudo.
Meu eu, meu ai
tudo que em mim fala
é silêncio é cilada
de fantasmas que me povoam
tudo que em mim habita
é ardência e súplica
de desertos querendo chuva.
Só tenho olhos para o leste
o pôr do sol:
um poema
cor de púrpura
trazendo à tona
o peso do tempo
os grãos das perdas
então dou as costas
à tarde que expira
soluçando abismos
e abro meu álbum
de delitos, num rito
de rejeição à culpa
porque para mim
o horizonte
é útero materno.
Lentes binoculares
o que captam os olhos
de um poeta idólatra
à beira de um poço ateu?
o eco da pedra suicida
o silêncio imo da água
com sede de ver o sol?
ou um céu subterrâneo
onde morcegos são anjos
aprisionados, e o diabo
é quem puxa a corda?
o que avista um poeta
debruçado numa janela
escancarada para o nada?
a falência da vida
a inércia dos mortos
um pássaro sem céu
ou um céu sem pássaros?
Poesia alada
talvez os poetas
sejam pardais
das manhãs perdidas
de uma infância
abreviada
e têm mania
de cantar
enquanto
catam palavras
de tudo aquilo
que fica extraviado
no silêncio
aos pardais
e aos poetas
ser nada é tudo
que lhes basta!
setembro, 2021
Neurivan Sousa é poeta e professor, natural de Magalhães de Almeida/MA (1974), mas radicado em Santa Rita. Membro fundador da Associação Maranhense de Escritores Independentes (AMEI) e Membro Correspondente da Academia Itapecuruense de Ciências, Letras e Artes (AICLA). É autor de Lume (2015), Palavras sonâmbulas (2016), Minha estampa é da cor do tempo (2018), da trilogia infantojuvenil O pequeno poeta, e do infantil Ribamar, o menino peixe.
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