Enredo:
Momo é o mais solitário entre os reis, mas
ala 1. os blocos do eu sozinho
rapazes vendendo extasy e água
mineral colombinas e odaliscas
vitaminadas pms cambistas
barões na corda bamba com adagas
de polipropileno patricinhas
transando um funk ostentação simbads
do asfalto cleópatras de Irajá
playboys sem samba no pé czarinas
estilosas ararajubas rosa-
choque de penachos iridescentes
bibas bofes samurais de outro oriente
alegorias momos melindrosas
e bêbados que dizem coisas vagas
tendo nos olhos munições de nadas
ala 2. do oriente ao ocidente
o antropólogo surfa entre pixels
movendo os dedos na pequena tela
de cristal líquido em seu smartphone
com abas em cascata sobrepostas
aos sinais de códigos demarcados
por hipertextos irreconhecíveis
como os tons deste céu na hora em que
a bateria aporta na apoteose
pra que as alas acabem de evoluir
e descobre surpreso um pouco antes
da escola desaparecer inteira
na dispersão que sobre tudo incide
que a palavra solidão existe
em todas as línguas catalogadas
ala 3. a solidão é uma escrita intempestiva
eu quero é botar meu bloco na rua
da amargura, do desterro, 'na sua'
é o nome do meu coração, deserto
sempre na sua, nem longe nem perto
da teoria, mas vivo redivivo
insisto nesses sambas imprecisos
falar de tanta coisa mas há quem
diga que não detenho — e é certo — engenho
& arte, a vibe do contemporâneo
não me habita e tudo soa entranho e
deslocado na ala do soneto
e eu quero que se foda no coreto
da poesia o síndico que risca o pó
do tempo e aqui me deixa bem, e só.
ala 4. os deuses foram despejados
os deuses estão todos mortos, não
que isso nos ofereça algum obstáculo
ao fluir das coisas, porque é tão fácil
seguir vivendo, mesmo sendo em vão
— ou com propósitos em profusão —
Cronos captura em seu esgoto, ágil
engenheiro da hermética engrenagem
que mói gargalo abaixo a coleção
de olimpos, sonhos e projetos formam
na memória como um dispositivo
sacado abruptamente pela mão
[o golpe duro e presto] que estorna
para o limbo o fatal error, desvio
de rota, zona morta, solidão.
ala 5. Abaporu se acerca do poeta
já disse oswald no virabrequim
do verso a poesia existe nos fatos
e no carnaval no salão dos passos
perdidos com poetas e arlequins
fudidos como eu tupiniquim
sem pindorama bela no retrato
e farofa bem pouca no meu prato
vendo crescerem as torres de marfim
do alto da sela de meu rocinante
de morim e sucata na avenida
guiado pelo mestre-de-bateria-
coração e seu ritmo alucinante
que o corpo configura em poesia
nas alas em que indo só só ia.
SAMPLERFICANDO
Meu destino quer samplear Rimbaud,
madagascar-me a carne até o fim:
não sei o que esperar da vida e, assim,
eu nada espero, esperando Bardot.
O corvo que me coube é um urubu
que voa baixo aqui no meu Parnaso
— cambaio, azul de fome e de olho raso,
seu nevermore não faz sentido algum.
E assim, eis que um destino solapado
por solecismos existenciais
não se compraz em me ver detonado,
e sem saber o quê, por quê, quem, quais,
vou sampleando este papo mandraque,
prestante a poetas como eu — de araque.
VEJA BEM, MARLOWE
no encalço deste tempo como quem
campana um serial killer vejo alguém
dentro do espelho me dizendo 'claro,
Enigma' enquanto vazam pelos cabos
do servidor central mais de mil vozes
urrando 'heil höllenmeister' qual foles
da forja deste século que busco
na tela do cardápio junkie food
por onde orbitam tânatos e um hermes
cego mudo e louco portando breves
ensaios cifrados poemas frag
mentos parcos do agora que não traz
pistas do paradeiro de um sentido
que como flor brotasse deste lixo
TRADICÇÃO TURÍSTICA (TRÍPTICO)
a Janus Vitalis, que, segundo consta, começou isso
TRADICÇÃO TURÍSTICA, 1
turista que, chegando agora a Roma,
deslumbrado e banal, vem à procura
da imagem do cartão postal, ou de uma
Roma que nada tem daquela Roma
que Virgílio cantou, se apressa e toma
o trem até a Termini, e, em suma,
a Via dei Condotti, sem nas ruas
nada reparar, alcança a pé: Roma
não mais é do que isso, uma vitrine
de Gucci, Prada, Valentino, Armani;
perder tempo pra ver o Borromini
de San Carlino alle Quattro Fontane?
Por que, se o Tibre flui ignorado
e ignorante até do seu passado?
TRADICÇÃO TURÍSTICA, 2
lendo um guia turístico de Roma
comprado na bookstore do Galeão,
acaba de aprender que Michelângelo
pintou os tetos da Sistina: Roma,
que não supõe de si o quanto outona,
susterá digressões na reunião
da trading — mas saiba, viajante, não
é a Roma do seu guia a vera Roma
e o verniz não é coisa que mantenha
o rumo na sua busca de sucesso,
liderança, influência nos processos,
nem sua gravata Ermenegildo Zegna,
porque beber do Tibre não lhe deu
nenhum passado pra chamar de seu.
TRADICÇÃO TURÍSTICA, 3
seu silicone vai fazer, em Roma,
o sucesso absoluto dos seios
que tanto beijei com meus lábios leigos
na língua de Ariosto que esta Roma
não venera como o faz às madonas
prontas para o deleite e o torpor,
colombianas, venezuelanas, por-
tenhas, brasileiras que estando em Roma
não verão muito mais do que os lençóis
de onde você me escreveu que 'os gringos
não sabem fuder', enquanto — no limbo
da Roma que Roma não é — faróis
luzem no Tibre, onde você, ardente,
faz o seu ponto, provisoriamente.
setembro, 2021
Nuno Rau, poeta, arquiteto, professor de história da arte, tem poemas em diversas revistas literárias, e nas antologias Desvio para o vermelho (2012), do Centro Cultural São Paulo, Escriptonita (2016), que coorganizou, 29 de Abril: o verso da violência (2015), e Jumento com faixa: deboche e antiodes ao fascismo (2021), entre outras. Publicou o livro Mecânica Aplicada (2017), poemas, finalista do 60º Prêmio Jabuti e do 3º Prêmio Rio de Literatura. É coeditor da revista mallarmargens e desde 2020 ministra oficinas de poesia no Instituto Estação das Letras (IEL), e destas oficinas reuniu recentemente os poemas na antologia Não mais os falsos infinitos (2021).
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