©douglas magno

 
 
 
 
 
 
 

Enredo:

Momo é o mais solitário entre os reis, mas



ala 1. os blocos do eu sozinho



rapazes vendendo extasy e água

mineral colombinas e odaliscas

vitaminadas pms cambistas

barões na corda bamba com adagas

de polipropileno patricinhas

transando um funk ostentação simbads

do asfalto cleópatras de Irajá

playboys sem samba no pé czarinas

estilosas ararajubas rosa-

choque de penachos iridescentes

bibas bofes samurais de outro oriente

alegorias momos melindrosas 

e bêbados que dizem coisas vagas

tendo nos olhos munições de nadas







ala 2. do oriente ao ocidente



o antropólogo surfa entre pixels

movendo os dedos na pequena tela

de cristal líquido em seu smartphone

com abas em cascata sobrepostas


aos sinais de códigos demarcados

por hipertextos irreconhecíveis

como os tons deste céu na hora em que 

a bateria aporta na apoteose


pra que as alas acabem de evoluir

e descobre surpreso um pouco antes

da escola desaparecer inteira


na dispersão que sobre tudo incide

que a palavra solidão existe

em todas as línguas catalogadas







ala 3. a solidão é uma escrita intempestiva



eu quero é botar meu bloco na rua

da amargura, do desterro, 'na sua'


é o nome do meu coração, deserto

sempre na sua, nem longe nem perto


da teoria, mas vivo redivivo

insisto nesses sambas imprecisos


falar de tanta coisa mas há quem

diga que não detenho — e é certo — engenho


& arte, a vibe do contemporâneo

não me habita e tudo soa entranho e


deslocado na ala do soneto

e eu quero que se foda no coreto


da poesia o síndico que risca o pó

do tempo e aqui me deixa bem, e só.







ala 4. os deuses foram despejados



os deuses estão todos mortos, não

que isso nos ofereça algum obstáculo

ao fluir das coisas, porque é tão fácil

seguir vivendo, mesmo sendo em vão


— ou com propósitos em profusão — 

Cronos captura em seu esgoto, ágil

engenheiro da hermética engrenagem

que mói gargalo abaixo a coleção


de olimpos, sonhos e projetos formam

na memória como um dispositivo

sacado abruptamente pela mão


[o golpe duro e presto] que estorna

para o limbo o fatal error, desvio

de rota, zona morta, solidão.







ala 5. Abaporu se acerca do poeta



já disse oswald no virabrequim

do verso a poesia existe nos fatos

e no carnaval no salão dos passos

perdidos com poetas e arlequins

fudidos como eu tupiniquim

sem pindorama bela no retrato 

e farofa bem pouca no meu prato

vendo crescerem as torres de marfim

do alto da sela de meu rocinante

de morim e sucata na avenida

guiado pelo mestre-de-bateria-

coração e seu ritmo alucinante

que o corpo configura em poesia

nas alas em que indo só só ia.







SAMPLERFICANDO



Meu destino quer samplear Rimbaud,

madagascar-me a carne até o fim:

não sei o que esperar da vida e, assim,

eu nada espero, esperando Bardot.

O corvo que me coube é um urubu

que voa baixo aqui no meu Parnaso

— cambaio, azul de fome e de olho raso,

seu nevermore não faz sentido algum.

E assim, eis que um destino solapado

por solecismos existenciais

não se compraz em me ver detonado,

e sem saber o quê, por quê, quem, quais,

vou sampleando este papo mandraque,

prestante a poetas como eu — de araque.







VEJA BEM, MARLOWE



no encalço deste tempo como quem

campana um serial killer vejo alguém


dentro do espelho me dizendo 'claro,

Enigma' enquanto vazam pelos cabos


do servidor central mais de mil vozes

urrando 'heil höllenmeister' qual foles


da forja deste século que busco

na tela do cardápio junkie food


por onde orbitam tânatos e um hermes

cego mudo e louco portando breves


ensaios cifrados poemas frag

mentos parcos do agora que não traz


pistas do paradeiro de um sentido

que como flor brotasse deste lixo







TRADICÇÃO TURÍSTICA (TRÍPTICO) 



a Janus Vitalis, que, segundo consta, começou isso



TRADICÇÃO TURÍSTICA, 1



turista que, chegando agora a Roma,

deslumbrado e banal, vem à procura

da imagem do cartão postal, ou de uma

Roma que nada tem daquela Roma

que Virgílio cantou, se apressa e toma 

o trem até a Termini, e, em suma,

a Via dei Condotti, sem nas ruas

nada reparar, alcança a pé: Roma

não mais é do que isso, uma vitrine

de Gucci, Prada, Valentino, Armani;

perder tempo pra ver o Borromini

de San Carlino alle Quattro Fontane?

Por que, se o Tibre flui ignorado

e ignorante até do seu passado?







TRADICÇÃO TURÍSTICA, 2



lendo um guia turístico de Roma

comprado na bookstore do Galeão,

acaba de aprender que Michelângelo

pintou os tetos da Sistina: Roma,

que não supõe de si o quanto outona,

susterá digressões na reunião

da trading — mas saiba, viajante, não

é a Roma do seu guia a vera Roma

e o verniz não é coisa que mantenha

o rumo na sua busca de sucesso,

liderança, influência nos processos,

nem sua gravata Ermenegildo Zegna,

porque beber do Tibre não lhe deu

nenhum passado pra chamar de seu.








TRADICÇÃO TURÍSTICA, 3



seu silicone vai fazer, em Roma,

o sucesso absoluto dos seios

que tanto beijei com meus lábios leigos

na língua de Ariosto que esta Roma

não venera como o faz às madonas

prontas para o deleite e o torpor,

colombianas, venezuelanas, por-

tenhas, brasileiras que estando em Roma

não verão muito mais do que os lençóis

de onde você me escreveu que 'os gringos

não sabem fuder', enquanto — no limbo

da Roma que Roma não é — faróis

luzem no Tibre, onde você, ardente,

faz o seu ponto, provisoriamente.

 



setembro, 2021



Nuno Rau, poeta, arquiteto, professor de história da arte, tem poemas em diversas revistas literárias, e nas antologias Desvio para o vermelho (2012), do Centro Cultural São Paulo, Escriptonita (2016), que coorganizou, 29 de Abril: o verso da violência (2015), e Jumento com faixa: deboche e antiodes ao fascismo (2021), entre outras. Publicou o livro Mecânica Aplicada (2017), poemas, finalista do 60º Prêmio Jabuti e do 3º Prêmio Rio de Literatura. É coeditor da revista mallarmargens e desde 2020 ministra oficinas de poesia no Instituto Estação das Letras (IEL), e destas oficinas reuniu recentemente os poemas na antologia Não mais os falsos infinitos (2021).


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