EVERY BODY DIE
Every body die, mesmo Deus e a sua linguagem. Mas mesmo assim, eu acordo para terminar a reza, para refazer o poema e a poeira desta insónia que há dias me vem assaltando a memória e os sonhos. Umas vezes são os pássaros dedicando às noites a razão do seu incêndio, a fúria da sua sombra ou o cabedal da sua solidão sobre o lodo chão deste submarino que aos homens ensopa; e insubmissa verga-se a cicatriz das madrugadas sobre o coldre das flores, sobre o ramo das águas conduzindo a conjugação do vento (…) à angústia de ter um deus suplantado sobre o abismo d(est)a carne, deste templo que se afivela ao esquecimento. (…) diz-se das flores o pecado, a morte e o silêncio que dos espelhos nos atravessa.
SOMBRAS
Tudo continua com o semblante vago de sempre: as sombras sufocam-se pelo reflexo do mar em seus olhares esquivos e epilépticos de roer a franja dos ossos; volto a aurora da manhã com a mesma dor que a alma nunca amanhece, como se o desespero fosse tingir a madrugada com o retinir de um Blues pobre de cálcio. A memória alheia-se do cansaço que tortuosamente abriga na voz a mácula movimentação do medo. Entedia-me esse vaivém que os dias acasalam. Ser vagem deixou de ter o mesmo gosto; e de repente, sinto que ando a morrer para dentro, assim como o mundo vai deixando de ser mundo e o sonho vai deixando de ser futuro.
[…]
Para Luiz Alfredo Garcia-Roza
Ao escrever a margem húmida do silêncio com o sangue, espreito a rouquidão da língua, a insígnia pronuncia dos pássaros balouçando o verão das noites num barco sem leme — a ignição dos lençóis para o derradeiro sono, pois já não guardo nos bolsos o sopro das sombras e a sua animal perversidade, mas sim a lágrima em que se ampara o fecho da voz na escuridão. Retenho na memória a bússola de uma navalha sangrando botões de luz nas mãos, como se recuasse o disco planetário sob a agulha de um vinil tocando "Plastic Heart" em Um Novo Dia Para Matar, ou como se eu regressasse a ideia platónica do primeiro amor, a sinceridade (banida) da infância, a originalidade/ inocência esquecida do léxico infantil, e a oração própria de quem escreve lembranças com a tinta fechada e o coração a escapar-lhe pela boca; pois tudo o que — agora — digo me parece um adultério, a dura sinonímia de estar a plagiar o discurso dos outros. E talvez por isso, tenha ainda a ténue necessidade de regressar ao útero das madrugadas com a seda dos sintagmas cobrindo-me o sonho.
[…]
Sentado à secretária, atiro a fala ao alpendre do silêncio; procuro entre os dedos, das mãos, o caminho que ladeia a angústia do tédio, mas não encontro, e sigo adormecido no asfalto da dor. Os prédios pelas janelas avivam a distância das estações. Há um presente invisível entre as pessoas, ou a palavra é que nos chega cansada da viagem!? (Então) pelo gargalo desço mais um bocejo que sabe a acre, o mesmo sabor azedo deste amor que me ensinou os íntimos segredos desta mulher a quem escrevo com o sangue o seu nome, e com a carne a escuridão da sua ausência, pois, atormenta-me o abismo do seu silêncio. Mas peço à Deus que me dê da palavra o revólver assassino deste sentimento, ou a corda suicida de quem há muito a insatisfação lhe cobra um escrito. Pois, do mesmo modo que um satanyoko metido a poeta escreveu na água, que a verdade existe antes da expressão, entretenho o entardecer do leme nos meandros de Abril, para que a árvore da memória observe o precipício onde durmo a profética sombra do cansaço, o suspiro onde anelar o Sol das manhas e tardes a lareira deste sono em que tudo se ensopa…. (como que a roubar dos meus colegas a atenção que ao professor lhes é devida.)
[…]
O que resta ao corpo se fecharmos a sombra?
A missa do sétimo dia, talvez,
Ou essa ferida de cuja insónia é um pesadelo
E cujo humos nos fere o coração e o proibido sono
Das pedras.
Ora, temos a voz e não temos nada.
A sombra foge-nos da morte
Como a este pássaro da noite, pois o que se tem no silêncio
É o lume da ausência a cruzar-nos as fotos do passado,
Pois os domingos cheiram à sangue
E o pão de cada dia caí-nos hoje amanhã e para sempre
Como que levado pelas mãos do cansaço
Pois vezes há que
Abandonados são os sonhos à beira de uma estrada
Como são essas estrelas apagadas no centro de um nome
(E suas ruínas)
Porque agudo é o perfil dos anjos revezando
A angústia sob a Santa Seia do senhor.
[…]
Em casa, os gatos espiam os nossos pecados
Como quem escreve a insónia de nossas noites
Sobre o feitiço de nossos medos
E todas as cruzes por onde bendizemos
As nossas faltas,
Pois um dia repartido, é um sonho desgraçado
E não precisamos de ser Isaías, Moisés ou Jacó
Para percebermos o quão custoso é um sorriso
Ou a liberdade de estar-se feliz hoje e amanhã
Sem ter que contar que tudo é uma falência
E que os nomes não são mais nada que essa terrível lembrança
A que o tempo nos molda
Ou a foice em que se assombra a luz de nossas memórias
Quando as lágrimas ameaçam a desminagem.
E porque de sal é feito o esquecimento
E de sal é feito todo o lamento
Grafamos sobre as nossas árvores as cinzas desse tempo primordial
Porque não só de dor são feitas as nossas chuvas
Como quando nos olhamos pelo espelho e a paixão em nossos olhos brilha
Como esta cidade que morre sobre os céus de nossa boca
Com a palavra em silêncio
Pois eis pelas manhãs o coral de nossa igreja:
Calm down, calm down and dae as an Angel
On the briedge;
Porque humano é o sono de um deus
Caído em nosso colo.
[…]
Depois da morte sempre custa repor o dia
Porque o poema sabe mais salubre ainda
E o abismo pelo qual sempre enxergamos
O clarão das manhãs
Está mais velho que o senhor da rua 15
E suas dores arrastadas em muletas brancas
Porque branca é a enumeração do pecado
Quando ainda sonhávamos com as gravatas
A sucumbirem-nos as vidas
Em pleno domingo de ramos
Pois quem diz páscoa, diz Jesus, diz Cristo
Ou o vulto desse pequeno deus nórdico de quem todos nós blasfemamos
E o reduzimos a nada
Porque aqui os braços cruzados não operam milagres
E nem saciam a fome
De quem a muito anda ajoelhado
Como que limpando à lágrimas
Todo o mal deste canto do mundo esquecido,
E mesmo assim fechamos os olhos para receber a noite
Porque das sombras se fazem as flores
E seus arco-íris de sete pétalas
Quando o silêncio estoura dos ossos
Depois a febre da tempestade.
[...]
Havia esta fotografia que nos tomava de assalto
e ninguém falava das noites como as mães guardadas
sobre a fuligem de suas lágrimas
ou sobre a cinza destas noites de páscoa
com o coração a bombear o vinho no lugar do sangue
pois havia esta curva para onde todo o homem se fazia
e ninguém nos salvava dos impostos de renda, de IVA
e nem do pobre alcoolismo que empreendíamos
quando os Bancos e agiotas assaltavam-nos a casa
e saqueavam-nos os poucos bens que a insónia nos legou
então começávamos a adoecer da boca
dos pés dos olhos e das mãos como nunca havia-nos acontecido
ao coração
e assim se iniciava a folia do nosso testamento
pois havia esta sombra para onde todos sonhos se reclinavam
à cripta de nossas culpas e medos,
e os que eram virgens, já não eram virgens
pois haviam perdido o céu de si mesmos
e olhavam para os espelhos como uma reclusão
chamando incenso da morte pelos bruços de uma rosa
e eram frias as suas águas
como este infortúnio de gatos a velarem-nos o sono
ou este pesadelo para onde atiramos a inocência das coisas
por sobre o barro desde nome que a saudade construiu.
[…]
Como dizer "o amor é fogo que arde sem se ver"
sem que a palavra desvanece e a saliva
te queime a boca?
Como dizer Cristo, Jeová ou Deus, e ainda assim
incitares rancor,
Vingança, ou ódio em tua vida?
Como dizer um outro nome, um outro corpo
e um outro beijo
se é de mim que o teu corpo, a tua mente, e o teu coração
chamam?
Como dizer a verdade e nada disto te afligir?
Como, como, como?
ANFÍBIA
Depois de perdida a casa, resta-nos o enxofre pela boca
A lágrima pela qual construímos o mapa da ausência
E estas cores de Saturno inviolável porque não resta nenhum nome
Com o qual esquecer o inverno, ou a árvore deste dilúvio
Que nos atravessa a alma o corpo e a sorte
Tantas, e tantas vezes
Como um dia ou um tino repetido sobre a artéria desta sangria.
E as orações desfalecem empilhadas sobre a ferida do tempo
O retrato repentino de quem há muito a insónia tomou pela mão
E ensinou o mais secreto segredo da sombra e da anfíbia fome
Como este amor que resoluto se mostra sobre as almádenas do silêncio
E suas historietas de ânsia e depressão
Com esta arritmia de deflagrar sobre os ossos a poeira
De todas as longevidades outrora reverenciadas
Porque a mácula é um pesadelo insone
Sob a labareda do silêncio, este abismo de cansaços
E de invariações alegóricas em que copulam os corpos
As cinzas e o seu esquecimento.
[...]
É sexta-feira, 13 e, eu acordo desse pesadelo
Que fora o corpo das estrelas em minha boca,
Olho p'ra o vazio desta página
E a chuva assusta-me
Assusta-me, do mesmo modo que assusta-me
A cama vazia à madrugada
Ou a falta desse pão com que matar a fome do amor
Ao pequeno almoço,
(porque cedo te esvais deste sono como que a puxares
contigo a quilha do meu coração)
Dizem que a maçã era um sonho
Mas eu jurava que os fios do teu suor eram o destino
As águas pelas quais andei pelo teu vasto deserto
A coleccionar área, fogo, água, ar e esperança
Pela geada do teu sorriso
Mas agora tudo se apaga
O luar, o solstício e chama desses versos
Com que te esculpo no silêncio
Do poema.
EVANGELHO SEGUNDO JOÃO DE DEUS
Abrir o evangelho com o louvor mais fúnebre
e no meio a todo esse silêncio da comunhão
perguntar ao Pastor da forma mais grave e simples possível
"onde estão os restos mortais do Diabo?"
e depois calar-se com o mundo, com o corpo e com a respiração dos espelhos
e esperar que se lhe tornem hóstia ou o sangue por entre o cálice
de Cristo, do Bispo, do Papa, de Vítor, ou da dita mulher amada
Pois são suas as lágrimas derramadas sobre o tumul(t)o
de Deus, de seus filhos, e do meu nome, humanamente esquecido.
Amém!
dezembro, 2021
Óscar Fanheiro nasceu a 07 de Agosto de 1995, em Maputo, Moçambique. É estudante finalista de Ciências da Comunicação (na especialidade de Jornalismo) e de Ciências Sociais e Filosóficas, e cofundador do "Movimento de Relações Públicas de Moçambique". Em 2018 foi finalista da 3ª edição do Prémio Literário UCCLA — Novos Talentos Novas Obras em Língua Portuguesa, com seu (primeiro) livro inédito de poesia, intitulado A gramática da solidão; em 2016 foi também finalista da 1ª edição do Prémio Literário Fim do Caminho, dedicado à modalidade de contos policiais ou criminais. Tem textos publicados em antologias, blogues e revistas electrónicas (das quais se destacam: a Revista Ruído Manifesto, a Revista Vício Velho, a Revista Literatura & Fechadura, a Mallarmargens Revista de Poesia & Arte Contemporânea, e os blogues Tenacidade das Palavras e, Cratylus — blogue de linguística, literatura e artes).
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