EXTERMÍNIO
despeno
o céu,
arrancando
as andorinhas.
ENGASGO
um nó
no passado
uma cruz
no vício
o arbítrio
é o beco
sem saída.
DE QUE VALE UM CÉU SEM ASAS?
meus irmãos da Guiné
de frases subnutridas, nos olham
como um baobá iluminado pela paz.
habitado por uma única palavra.
eu me faço infinitas perguntas.
onde está António Trabulo?
por que foi morar num mito Shaka Zulu?
onde esconderam a liberdade?
a liberdade mora na laje
de todas as favelas
e toda tarde ela empina um arco-íris.
A IMENSIDÃO DO ALCANCE
tratei do jardim,
onde morava
um girassol
que tocava Bach
por diversão.
minhas mãos repetiam
a primavera
a florada
os cachos.
vibrei nas asas
de Ícaro,
conquistei os astros.
eu sou o chão
acaricio os astros;
toco suas partes mais íntimas
para congelar minhas mãos
na imensidão da palavra.
DOSE
na praça Duque de Caxias
embriago
o sonho
nos olhos nômades
do meu ressentimento.
saio pisando
a cinza dos cigarros
sem interesse
no desespero do óbito.
encontro outros bêbados.
seguro na mão
do homem
que teima
em caminhar.
com as mãos ainda casadas
esmagamos uma aranha.
agora,
choramos juntos,
mas não morrerei de lucidez.
PELO OLHO MÁGICO
a filha era muito amada.
as luzes ficavam acesas,
esperando por ela.
os gritos acordaram o pai,
que já era viúvo há
cinco anos.
ele colocou o olho,
na cena.
o marginal tomou o lugar do cão.
a noite não suporta
convenções,
nem lirismo.
BOPE
corto o pelo dos pés
no batente;
a porta de dentro
parece fechada.
uma lagartixa cai
do muro.
tento juntá-la.
ela me encara.
o rabo do bicho
sai correndo atrás do corpo.
desejei
aquela resistência.
ANTÁRTIDA
eram cinco moças
tão bem cuidadas;
exalavam luz
e bordavam nuvens.
eram um objeto visível,
disponível para surpresas.
não enganavam o desprezo!
todas foram abusadas:
duas denunciaram.
duas castigam o céu
e uma não toca no assunto.
é verdade, o Saara não é
o maior deserto
do mundo.
MAPAS NA CARNE
os territórios do meu deserto
são antigos.
neles, nenhum romano
foi torturado.
o espanto acompanha
a paisagem que secou.
os bárbaros fazem longa viagem
nos meus olhos, sem fronteiras,
nem porto.
sou afetado pelos raios
e por uma cartografia
indecifrável.
os mapas transbordam flores,
mas ainda me torturam.
DESAPARECIDO
os velhos continuam
arrastando as sandálias
no quarto.
às quatro da manhã,
o cheiro do café
reacende a infância.
meu bisavô está lá,
toca fogo no chiqueiro
dos porcos.
todos estão lá!
a ausência é só minha
e só em mim
está colado um cartaz.
CABO DAS TORMENTAS
olho nos olhos de minha irmã
e vejo os navios perdidos
no mar que é só nosso,
que herdamos de meu pai
como um vínculo invisível
das águas.
ela não chora,
apesar da tempestade.
é uma paisagem perdida,
um coral, um alga
uma garrafa vazia.
olho nos olhos de minha irmã
e desconfio do sorriso
de Bartolomeu Dias.
PERDIDO
teus cabelos
estão espalhados
pela casa.
entre as laranjas,
na fruteira,
encontro teus cabelos.
no chão do quarto
me enfrentam.
afirmam que eu sou solúvel
e serei chorume
sem desespero,
nem amor.
é certo que vou desaparecer;
não farei mais juramentos.
o universo é insolúvel,
preciso de cartas náuticas.
O TOMBO
há muito tempo
eu não ousava ser criança.
saio na área
ao lado da casa
lá estão os brinquedos
esperando
o gás da vida.
um patinete
enche meus pulmões
de coragem.
suspendo as rugas
do tirano.
consigo sorrir novamente.
um pregador de roupas
me derruba.
dezembro, 2021
Paulo Rodrigues (Caxias, 1978), é graduado em Letras e Filosofia. Especialista em Língua Portuguesa, professor de literatura, poeta, jornalista. É autor de vários livros, dentre eles, O abrigo de Orfeu (Editora Penalux, 2017); Escombros de ninguém (Editora Penalux, 2018). Ganhou o prêmio Álvares de Azevedo da UBE/RJ em 2019, com o livro Uma interpretação para São Gregório. Venceu o prêmio Literatura e Fechadura de São Paulo em 2020, com o livro Cinelândia. É membro da Academia Poética Brasileira.
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