Tempão
Morei no nome antes do corpo. Nunca
me dei em discussões acerca da calma e da cama.
Tudo me pareceu mais com ver a rua
deserta depois que as crianças abandonavam
o sol e a poeira.
Morei num corpo nomeado.
E a vida foi ternura, engajamento
e preguiça até os quatro anos de idade. Morei no nome
e no campo? Sexo sem tambor. O pecado me precedeu o sono.
E escutei
do relógio uma confissão: conselhos incorpóreos.
Místico, andei aos pulos
pelos arbustos, estradas e trilhos onde perfurei
a inocência. Muito cedo, nesse país,
fui uma mulher desabitada,
um homem xucro, a criança que morreu precoce. Agora
ouço sermões no rádio. As benesses caem com o tempo,
são colhidas; podam-se os brotos.
Vi então as cascas abandonarem uma pele lisinha
para trás. As pedras amolecerem conforme
a vontade dos homens.
Os bichos irem dormir com sol. A chuva cortar volta da casa
e da plantação. Vi tudo com olhos
que se despregam do rosto com a época.
Há tempo para tudo, mas não nesse país.
Pávido
Pávido colostro, encha-me. Pelos
pubianos, recubram-me. Moradas
do além, afastem-se. A hora é longa.
Paixões antepassadas, manquem.
Cobras do destino, afoitas, driblem-me.
Cacos que quebrei, esfarelem-se.
Não há nada
para ver em meus olhos, doutor.
Nem, nunca, não. As coisas nunca
foram fáceis ― por isso não domo
mais a relva que se forma
no meu pensamento. Concubino.
Fiz do meu rosto um outdoor
de suores e risos contritos. Amei
como pude e sempre batendo
com os beijos
nas quinas. Aventurei-me pelas ruas
à noite porque ― à custa do medo ―
pensei que encontraria solução.
Consolos. Mais tarde do que o dia?
Não sei. Uma vez senti o terror
de voltar cedo para o mundo. Revides.
Se ainda não revelei
o que todo mundo já sabia
era por preguiça de expiar-me.
Mais do que sempre. Mais.
A explicação na cruz levada às costas.
Temi tanto pisar em falso
que cair foi minha rota. A vida
em minhas costas? Tormentos.
Agora-me. Apodreço. Ó, ó, ó. Preço.
Das urgências
Tem sempre algo urgente
que está escondido. Em toda parte:
esquece-se. E nesse mundo onde viver
é lembrar nomes, endereços, contatos,
perder o que quer que seja é um pequeno apocalipse.
Local, mas devastador. Ele deita a vegetação e queima
as frutas. Nada tornará a crescer.
Por isso leva-se um caderno, uma caneta,
o bloco de notas do celular,
a câmera, os olhos, as pernas e todo um sistema
nervoso prestes a entrar em ebulição.
Anote-se bem: a lápis ou à caneta: tudo
que agora cresce como memória e crisálidas,
e parece um filme sendo rodado,
não sobrevive à perda do mecanismo cerebral.
Acode-se. Atormenta-se. Mas não.
O que passou já é outra coisa. Ainda virá.
O que passou sou eu. É você.
Os olhos, veja: acabaram-se. E as mãos
de fazer cafunés. As mãos de passar
café todos os dias. Os pés com os quais,
em vão e triste, tentou percorrer
o mundo todo a fugir do que se acaba.
A noite inteira
Casas afundam na margem da rua.
O semáforo
está condenado
a acenar para ninguém. Cada passo
que dou é um atentado
contra esse silêncio, visitado,
de vez em quando, por um latido longe.
Ou por um caminhão que passa
pela entrada e saída da cidade
de casas adormecidas.
Não sei o que sabem
esses olhos trancafiados.
O que vejo não cabe no poema.
O que sei dura muito pouco.
Soletrar o mundo não vale de nada.
Não participo do jogo.
Teologia
1.
Armou uma guerra contra mim
desde o dia da minha alvorada.
Fez-nos inimigas a mim e as cobras
desde muito tenra idade. Colocou no meu caminho
as emboscadas onde fiquei atado, perdido.
Os destroços contam de mim. Riu quando passei.
Desatento vivi sem desconfiar
do ódio com o qual me embalsama a cara, agora.
Aquilo com que não mais governa o mundo.
2.
E deita sobre a minha vergonha.
Tenho a cara achatada
pela bronca que lhe tomei das ventas.
E depois das chagas, que abri
com os dedos
em polvoroso rancor,
ouvi do céu muitos chiados
que diziam ser um sinal. Entretanto
sobra ao seu costume
enjeitar-me. Produzir um choro leve
e assim seguir para o próximo mundo.
Acabo ainda este ano.
Nunca fora vocês os que morreram
Mas veja pelo lado bom: ainda
somos jovens para morrer.
Temos, de certa forma, uma vida.
A taxa de mortalidade do futuro
nunca esteve tão alta.
Não temos certeza de mais nada.
Dizer se tornou burocrático.
Mas agora sabemos que é impossível
agradar a todos, mesmo
dizendo que "nem a gregos e a troianos".
Soltamos menos fogos de artifício.
Encerramos as votações em muitos
países.
Corremos menos. Comemos mais.
No meio da rua, um grito comunitário:
olhe pelo lado bom das coisas:
ainda é possível se salvar
do mundo. Ainda existem portas abertas:
as igrejinhas, os barracões, e os bares.
Sim, ainda é possível o genocídio, mas
veja pelo lado bom das coisas:
"nunca antes fomos nós os que morreram".
Dois janeiros atrás
Estão cantando os mesmos versos como se fossem,
de novo, as mesmas pessoas; não mais desconhecidas
pelo tempo ou pelo pó acumulado em cima dos móveis.
Caso se esbarrassem numa esquina movimentada,
em vez dos impropérios que disseram na última vez
que se viram, diriam apenas "perdão" e "me desculpe"
sem fazer nenhum gesto com as mãos, senão encolher
os ombros para não encostar em mais ninguém. Sem
olhar nos olhos. Aquele pedido cavalgando os ombros
distraídos. Dando à mínima para os dois, a calçada espia
e segue seu caminho debaixo dos pés das pessoas apressadas
em se desculpar e partir.
Circunstancial
Olhe para as circunstâncias: não era para termos
sobrevivido
a essa infância. Não era para
termos escapado
dessa vizinhança. Mas aonde chegamos
não é lugar de descanso.
Um começo imperativo
nos assombra em todo canto.
Olhe para as circunstâncias:
não devíamos ter escapado das estatísticas.
Se aqui estamos é por teimosia.
Sobrevivemos
o inevitável. Ganhamos um pouco de peso. Mas olhe
para as circunstâncias: a gola em que nos enfiamos
é menor que o pescoço,
menor que tudo que já tivemos,
fomos, e vimos. Sobrevivemos
à fazenda de cana-de-açúcar, mas olhe
onde fomos parar: no meio de uma colheita.
Vamos ser honestos,
essas mãos contrastam muito com esse piso de mármore.
A boca defunta dos meus ancestrais
Abrir a boca defunta dos meus avós é como abrir
um livro antigo, ou melhor, escutar um disco de vinil.
Ouvir palavras, alguns dirão mortas, mas em pleno
uso na juventude quase terminada. Abrir a boca defunta
deles e pescar sentidos outrora arcaicos. Descender.
Desde muito cedo aprendi que há muitas maneiras de dizer
as coisas. Nomear. Meus tios-avós contavam poucas
moedas nos bolsos. Poucos dentes. Quando abriam a
boca, o cheiro de tabaco de corda recendia no ambiente.
Na mesa da cozinha competia com a fumaça do fogão
de lenha. Entre jogos de carteado e conversas de assombração.
Risos. Ouvia muito bem atento, a cabeça na altura da mesa,
a verdadeira riqueza é o que se traz no coração. Só muito
tempo depois entendi: quando alguém 一 daquele tempo,
daquele lugar 一 falava em coração, falava em consciência.
É preciso ter cautela com o que se guarda no peito.
É a algibeira das memórias. O balaio das imagens. É por isso
que aqui se diz tabule com as panelas, pois não é tudo que
vai muito tempo ao fogo. Nem tudo combina com o que
arde, estalando lenha. É preciso, digo, é preciso
apurar muito bem as palavras na boca. Tem pouco custo
de armazenação. É preciso ter cuidado ao debulhar os grãos
entre os presentes. Aquinhoar. Já vi muito prato bater,
panela cair, copo quebrar por conta de uma palavra
caindo desajeitada, feito um enxadão, no pé dos outros.
As coisas que a gente ouve 一 as coisas que a gente
grava 一 ficam reservadas no paiol sentimental. Turam.
Viram palha com o tempo. E, depois, enchemos os nossos
colchões e travesseiros com elas. Aqui, onde dorme-se por cima
das mágoas. E trepa-se ouvindo a respiração pesada
do tabaco das visitas. Os sussurros fantasmagóricos
das galinhas noturnas. Ao abrir a boca e proferir maldições
contra aquilo que se passou, contra o dia da concepção,
contra o próprio parto, Deus desce de sua glória e se senta
junto da gente na mesa. Pranto.
[Poemas inéditos]
dezembro, 2021
Pedro Moreira é poeta. Nasceu no interior de S. Paulo, em 1995. Editou o blogue literário Idê. Publicou a coletânea de poemas intitulada Malemá (Patuá, 2021).
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