,
estabelecer um início
(no princípio, deus criou o céu e a terra...
ou
era uma vez...
ou
abril é o mais cruel dos meses...
ou
nonada. tiros que o senhor ouviu...)
— eis aí uma estratégia
para o poema sobreviver além da primeira página
,
o poema como uma narrativa:
um fio de ideia puxando outra ideia
da mesma maneira que um peixe puxa outro peixe
[em uma tarde de sol, à beira do lago]
(mas
só para aqueles que têm paciência
sabem esperar
conhecem um pouco dos humores das águas
& conseguem — são poucos —
aceitar alguns dissabores: calor
suor, mal odor, insetos, insolação)
,
o poema como uma narrativa:
um fio de ideia puxando outra ideia
,
da mesma maneira que um osso puxa outro osso
[em um lamaçal esquecido por deus]
(mas
só para aqueles que tem coragem
pouco importam em sujar os pés
& conseguem — são poucos —
aceitar alguns dissabores: lama
limo, mal cheiro, lodo)
,
estabelecer um início
(fiat lux...
ou
muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento...
ou
ao despertar de um sonho intranquilo, certa manhã...
ou
no meio do caminho tinha uma pedra...
ou
nel mezzo del cammin di nostra vita...)
— eis aí um subterfúgio
para o poema se estender além da segunda página
,
o início estabelecido:
matéria bruta que vai sendo moldada
para o poema se estender além do haicai
(& seguir sendo moldado)
o início estabelecido:
matéria bruta que vai sendo moldada
para o poema se estender além do soneto
& começar a se engraçar com as elegias
com os cantos, com as odes
(& seguir sendo moldado)
o início estabelecido:
matéria bruta que vai sendo moldada
&, sem que se perceba
o poema
— que é feito de nada —
vai sendo moldado
,
& depois outros subterfúgios
(para manter o poema em seu fluxo):
rimas internas para prender o leitor;
citações de outros autores — colagens
plágios, homenagens (para dar um ar —
ou dar ares — de intelectualidade);
& depois outros subterfúgios
(para manter o poema em seu fluxo):
ir colocando telha por telha
até construir um telhado
(aqui, plagiando o Oswaldo)
,
& depois outros subterfúgios
(para manter o poema em seu fluxo):
ir lutando com as palavras
a luta mais vã
/até romper a manhã/
(aqui, citando o Carlos)
& depois outros subterfúgios
(para manter o poema em seu fluxo):
ir catando feijão, soprando a palha e o oco
ir tecendo a manhã — luz balão
(para cear as migalhas da mesa de João)
,
importante
(para o poema manter o seu fluxo)
deixar um fio solto em algum lugar
para servir de isca para os incautos
importante
(para o poema manter o seu fluxo)
deixar um fio solto
(um fio desencapado)
para servir de armadilha para os desavisados
(& uma luz se acender
[pálida]
quando esse fio for conectado mais adiante
— fiat lux —
em alguma parte)
,
& outros subterfúgios que não se revelam
para manter uma aura de mistério
& obrigar o leitor a escavar em busca dos ossos
(em um lamaçal esquecido por deus)
não os ossos superficiais
que esses não passam de palavras
impressas
na página
obrigar o leitor — esse ser raro —
a ir atrás daqueles ossos que não estão à flor do chão
ir atrás daqueles ossos que se escondem no fundo
mais fundo
descobertos esses ossos
— pouco mais que palavras impressas na página —
alegrá-lo, ou convencê-lo (o leitor mais raro)
a ir atrás daqueles ossos que se escondem um horizonte
mais abaixo
,
& outros subterfúgios que não se revelam
para manter uma aura de mistério
& obrigar o leitor a buscar o peixe dos sonhos
aquele peixe que arrebenta a linha
& não sabemos dele nada além do brilho — muito rápido —
de seu dorso quando — muito rápido —
ele pranteia na flor d'água
a inquietação de faca
(segundo o poeta)
que há nos peixes
,
importante ter uma sugestão de tema
porém, não muito óbvio:
nada de fácil digestão
Importante ter uma sugestão de tema
porém, não muito óbvio:
nada de mastigado em demasia
(para manter o poema em seu f l u x o)
(para manter uma aura de mistério)
,
Importante:
brumas entre as palavras pode ser demais (com-
fuso & sem um mapa, o leitor se evapora);
brumas entre as estrofes talvez seja o ideal (perce-
be-se o caminho adiante, com certa segurança);
brumas sobre as páginas por certo é bruma demais
(ainda que se possa seguir
[como guia]
um fio solto
[de preferência, um fio desencapado])
,
& o vento forte, quando menos se espera, sopra
& tudo que se ocultava, de repente se mostra
tem-se um início: não há mais volta
setembro, 2021
Rafael Nolli é professor, formado em Letras e Geografia. Publicou: Memórias à Beira de um Estopim (poemas, JAR Editora, 2005), Elefante (poemas, Coletivo Anfisbena, 2013), Gertrude Sabe Tudo (infantojuvenil, Editora Gulliver, 2016), Ao Pé da Letra (infantojuvenil, independente, 2017) e Sr Bigodes era o seu Nome (infantojuvenil, LAB, 2021).
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