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Do violino ao gongo



Violino hediondo, de pinho precário,

Dado aos cupins, sem a quarta das cordas;

Com arco torto em mãos frouxas e gordas,

Toca um minueto em seu ritmo ternário.


Ouve-se ao fundo uma trêmula orquestra

Que triste busca enflorar com clarim

E com trompete o minueto sem fim

Que é tracejado de forma canhestra.


Um pesadelo sonoro, tão longo

Que afronta a nossa audição ao limite

Durante todo o conjunto da suíte,

Conclusa ao sórdido estrondo do gongo.







Congoleses deixam Brasil fugindo da crise e morrem no mar na Colômbia



A viagem que dura meses

De galera desde o Congo.

Um longo percurso, longo

O inferno dos congoleses.


Fogem desse Congo hostil,

Da fome, que os afugenta

Também daqui, da tormenta

Que os acompanha ao Brasil.


Acre, Peru, Panamá...

No rumo que o norte aponte,

Pondo sempre no horizonte

O sonho de um Canadá.


Por sete mil e oitocentos, 

São levados por coiotes

Compressos dentro dos botes,

De onde se ouvem seus lamentos.


Na Colômbia, a tevê exibe

Que tomba uma das canoas

Com trinta e duas pessoas

Mortas no mar do Caribe.


Dos corpos, são dezessete

Descobertos: nove adultos

E oito miúdos insepultos,

Todos eles sem colete.


Mas não computaram entre

As crianças mortas, dois fetos

Que viajavam ali, quietos,

Dentro das mães, em seu ventre.







Drama operário



Nesta manhã,

Ele desperta.

Come uma incerta

Suja hortelã


Drama operário:

Ele garimpa

A roupa limpa

Dentro do armário.


Viagem de trem

Rodando o globo,

Até Vaz Lobo

Desde Xerém.


Fazem piquete,

Cobram que lute...

Entra sob chutes

Na indústria às sete.


Dele inclusive,

A alta engrenagem

Processa a moagem

Do que ali vive.


A indústria entrança

Longa mortalha

A quem trabalha,

Aos poucos, mansa...


Repouso e almoço

De dez segundos.

E ele no fundo

Do extenso poço.


Turno difícil

Que o torna fraco.

Sonha o tabaco,

O alívio e o vício.


Fim da jornada,

Em casa, enfim.

Com gergelim,

Toma a gemada.







Guerra contra o Ocidente



Quanto ao herege, o jornal nos informa:

Queimado vivo na porta do templo

Para que sirva de máximo exemplo

Do fim que é dado ao desvio de norma.


Chegam notícias que narram sem pausa

A morte vil de civis numa viela;

Um homem-bomba que, então, se cancela

Severamente a favor de uma causa.


E o irmão menor do suicida, animado,

Num lance de olhos acima dos ombros,

Nada vislumbra senão os escombros

Que enterram vítimas desse atentado.







Dentes de um sorriso magro



Vê-se o dente pontiagudo

Nos lábios de luz escassa

De homens pobres, sobretudo,

Cujo estado nos rechaça


De pronto, até percebermos

Que se tornou tão comum

Não só em lugares ermos

Gente coagida ao jejum


Que surge ao se ter a fome

Usual à bruta barbárie

De, ainda quando não se come,

Exibir o azul da cárie.







As crises



Experimentam as crises

Deitados pelas calçadas,

Sob as vultosas marquises

Das mercearias fechadas.


Na linha tênue do abismo,

Vive então mais um pedinte

Implorando pelo altruísmo

Do que passa e do seguinte.


Essa esmola do devoto

Se transformará no arroz

Comido ao lado do esgoto

Que ao céu aberto se expôs.







No longo corredor do Hospital da Ordem dos Franciscanos



No setor de oncologia

Do hospital, um homem manco

Move-se em frouxa apatia

Direto ao quarto branco.


São tantos tubos e sonda

E soro... Tramal, Dramin...

E que seu corpo responda

De pronto, curando-o enfim.


Dispensa o par de muletas

Vendo a cadeira de rodas

À frente, livre e discreta,

Onde logo se acomoda.


No quarto, sente-se mal

Já que o sangue não circula.

(É efeito colateral 

Do Dabaz, segundo a bula.)


E observa-o de lado a lado

A estátua de São Francisco,

O manco que tem cuidado

De um câncer em seu menisco.







O caminhão de lixo



Um caminhão que promove a coleta

De todo o lixo de nossa avenida

Dobra à direita, à maneira suicida,

Ligeiramente, sem mesmo dar seta.


Quase atropela a mulher de vestido

Azul escuro e chapéu amarelo.

Alguém precisa de pronto detê-lo

Antes que cause algum mal indevido.


Um dos lixeiros procura conter

Os sacos dentro do veículo abjeto.

E o caminhão continua o trajeto

Ouvindo injúrias da voz da mulher.


Chega a seu fim: no lixão desemboca

Para o correto despejo do lixo,

Feito com zelo, com certo capricho,

Deixando limpa a cidade carioca.







Dentro da jaula



A jaula

É confortabilíssima

Há um divã silencioso

Com ópio por perto

- Ricardo Pedrosa Alves



Possuo conforto na jaula: poltrona,

Ópio, Flaubert, frigobar em desuso,

Poemas em russo e alemão que traduzo

Quando a tevê digital não funciona.


Nenhum contato, jamais um intruso,

Ninguém me encontra ou sequer telefona.

Tranco-me desde a trigésima nona

Semana do ano, vivendo recluso.


Embora a assuste morar na gaiola,

Longe de casa, dois quartos com suíte,

Saiba que vivo em conforto, acredite.


Pondere bem, considere o convite,

Venha enjaular-se e se livre de ebola,

Rubéola, sífilis, gripe espanhola...







Pecado original



Tenho vivido sob certa pressão...


Mal durmo à noite, 

Com crise de estresse,

De ansiedade (e com mais se eu pudesse)

Ainda por conta da queda de Adão.







Dístico



Decide o poema (que a ti eu exibo)

Dar voz ao cântico antigo da tribo.



março, 2021



Ranieri Carli, professor e crítico de literatura — autor de A estética de György Lukács e o triunfo do realismo na literatura — é também poeta. Publicou Toda Estupidez (Autografia, 2019). Reúne novos poemas em Autorretrato de nossa carência, a ser publicado em breve.


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