POEMA SEM FIM
Há um incêndio de luz
sobre a pele
das palavras.
Uma frase guardada
na urna
primitiva.
Quem domina teu corpo
e subjuga a tua alma,
escrevendo um poema
com o sal
da saliva?
Fiz nascer em teu chão
de branco abstrato
a semente
do verbo
num verso exato
a roer tua carne
por fora
e por dentro.
Que frase se esconde
ao entardecer?
E o final do poema,
como há de ser?
VIBRA EM MEUS VERSOS ESTA VÍBORA
Vibra em meus versos
esta víbora.
Estas águas,
este cheiro de oceanos.
A voragem ancestral
destes arcanos,
a arrancar-me do peito
as suas fibras.
Vibra em meus versos
esta ira
de vocábulos sem datas.
Esta odisseia
naufragada
na garganta.
Alegria e tristezas
de quem canta.
Se este poema fosse
um bólido,
seria sólido.
Se fosse líquido,
seria lucro
ou algo a mais
do que o insólito.
Se este poema fosse
brecha,
seria fresta.
Se fosse branco,
seria mecha
ou algo a mais
no seu invólucro.
Se este poema fosse
um dígito,
seria um número.
Se fosse insano,
seria insumo,
mas não é isso
e nem aquilo.
Vibra em meus versos
este rosnado raivoso
de tigre ferido.
Esta coisa
que é
sem nunca ter sido
e que nunca se completa.
Vibra em meus versos
esta ferida aberta.
FOME VERBAL
Entre a mudez e a linguagem
agasalham-se frases
afogadas na saliva.
As gavetas arquivam verbos,
adesivam versos, ardem
à deriva do silêncio.
É imperativo subornar a palavra.
Fazê-la cúmplice
dos neologismos que desfibram
nossas vísceras.
Entretanto acendemos ossos.
Na solidão dos dias
catamos um pouco de azul.
Alguma coisa
que nos mate a fome.
Talvez um pedaço de nuvem.
Talvez um pedaço de céu.
DESINVENTO
Os olhares tecem as tardes, triam
somente o supérfluo, revogam verbos,
desfazem versos.
Diriam os insanos que as palavras
são répteis que nos raptam
à sua beleza, às armadilhas
que nos desarmam
em silêncio e silício.
Mas é preciso cantar. Hercúleo
erguer o que nos rege, mesmo
quando a palavra
nos range nos dentes.
Dizer não ao desarme
do que raiva em nós
quando rugir também se faz
música, mesmo a contragosto,
mesmo a contratempo.
O resto são fábulas febris,
fluxos de étimos, lendas
que desinvento.
PUREZA
Não,
o poema jamais se curvará
à minha sintaxe desordenada.
Ao meu explícito desejo
de expressar o indizível.
O poema jamais se submeterá
ao ilogismo sublinhado
do que escrevo.
Do que escravo, escavo.
O poema jamais se deixará levar
pelo falso encanto
de minhas metáforas veladas.
O poema quer apenas permanecer
atado à sua pureza,
sem os desnecessários enfeites
que enfeiam a sua beleza.
LEGADO
Te deixo aqui
os papéis
onde escondi
meu corpo.
(Esta enigmática
e irônica
composição
construída
ao longo dos anos.)
Neles estão
desnudados
todos os verbos
— vértebras
do que inventei —
expostos aos olhos
vorazes
dos que me leem.
EXUMAÇÃO
Quando exumarem teu corpo
e dissecarem teu ventre,
jorrarão palavras adoçadas
com sangue, sílabas indivisíveis
e metáforas de luzes.
Restos de naufragadas naus
sairão de tuas veias
e revelarão antigos cantos
entoados em antigos portos.
Para que não fiques
esquecidas nas ruínas das memórias
gritarei, com os corvos,
o que escrevestes aos homens
quando as estrelas
ardiam em teus dedos, e as noites
engoliam teus delírios.
Até que a chuva fertilize
a rude rima carnívora dos abutres
e o silêncio
sangre num grito.
O GRITO
Fabrico lagos
onde reina o teu deserto.
Exausto de bater
à tua porta,
consagro-me à solidão
dos dias gastos.
Mesmo assim, estás
em mim, grudada
em meus ossos, feito pele.
Por isso, esta fome
de tempestades. Esta
sede de raios
elevada ao infinito.
Esta vontade de ser-
não aquele que grita-
mas o próprio grito.
OCULTA VERBA
Insone é a noite que se desata,
carnívora. Por isso, ceifo
o ilusório que se estende,
feito um manto,
no chão que adoça a linguagem.
Sabes o quanto adornei
teus segredos, cravando-os
no silêncio. O quanto
doei-me à inocência
à inocência
dessa rude nudez implícita
em tua fala. Agora,
soletro o fogo
que arde em teus lábios,
enquanto arranho
a pele acesa do poema.
ABORTO
Não lançarei aos porcos
as pérolas do meu canto.
Nem aos parcos
estenderei
a maciez do cetim.
Estou onde o vento
sopra frases mortas
ao teu ouvido.
Onde tudo é sussurro
amortalhado em silêncio.
Podes decifrar o que se doa
aos abutres
neste doce tempo
de amargos?
Podes abortar
a gravidez dos fonemas
que se agitam
no teu ventre?
Torpes voam as palavras
nas asas rudes do vento.
E o que não serve
para a poesia,
também não serve
como alimento.
BLUES
Abandonei-me para além
da pele
onde costurei teu nome
à língua.
É agora, preso ao ócio
que deixaste, invento serpentes,
costuro o rosto
tentando estancar
as cicatrizes
que sangram.
Ah, companheira, agora
que estás tão longe
e que os anos vão
aos poucos apagando
nossos delírios,
escrever é como atravessar
o coração
com a esferográfica.
março, 2021
Rodrigues de Senna nasceu em Teresina/PI. É poeta, articulista e compositor (letrista). Apaixonado pela boa arte em geral, é amante incondicional de MPB, Heavy Metal e quadrinhos. Desin-formou-se em Missiologia pela EMAD. Autor dos livros O sal do verbo (2017) e O exercício da fala (2019), edições do autor. Atualmente, reside e trabalha em Palmas (Tocantins), na área de publicidade.
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