II
Tenho pensado na palavra aleluia
escapando no rosnado das onças, entre seus dentes espumados pela dor dos tiros;
Aleluia, devem repetir as cadelas
quando lambem a placenta dos filhotes e percebem na cria a perpetuação do instinto.
De tal aleluia foi a água viva que queimou meu corpo, aleluia, gritei com a boca abafada entre os dedos.
Imagino que nos saltos do balé
as golfinhos fêmeas digam aleluia para as águas que amortecem a queda;
Todas as vezes que uma ursa encontra um cadáver de foca, todas as vezes que a foca percebe o frio estranhado da morte: aleluia.
Tenho pensado que aleluia, talvez,
seja o hino das aves na reta da mira, seja o vento veloz que nasce de suas asas;
Penso nas aleluias que soam em coro da floresta,
quando as índias dão de seus peitos o leite da vida e as raízes da compreensão universal.
Eu também uivei aleluias e rezas quando avancei sobre a exaustão e permaneci em pé sobre o medo.
Sempre que vejo de longe uma mulher apressada em sobreviver, uma mulher
assumindo o sangue secular do renascimento,
imagino aleluias no canto dos que se entregam puros.
Faz sol
Logo agora que a chuva parou e que voltamos a ter vinis na estante. Agora, bem agora que não queremos mais ter tudo pois estamos de folga. Que não precisamos calçar sapatos, que a lua de mel mora no sofá de veludo. Bem agora.
Estava chovendo antes de ser hoje. Antes de ser este cabelo ruivo secando ao vento antes de ser vida acontecendo a partir das dez da amanhã. Mas dormir é sonho que também é noite. Bem agora que dormir é sonho eu escuto os gritos lá fora e corro pra ver a morte, o ardor, a bomba. Bem agora, bombas. Explosões que não são coloridas e a gente querendo um banho morno seguido de pijama cama pra dois nossa comida. Bem agora que acabou a comida, que o sapato aperta e que a gente desaprendeu a dançar, já não temos cabelos nem sono nem os sonhos.
O que é que a gente vai fazer quando esta guerra acabar?
Eu tenho nas mãos o coração de um pássaro
Eu abro o peito do pássaro: sinto o coração bater na
ponta do dedo
e tenho penas de todas as dores
enquanto o pássaro me observa segurando seu coração.
O pássaro ainda se debate com violência
mas não pode voar
e eu já não sei mais como devolver-lhe as palpitações,
pois a morte agarrou minhas mãos e está tentando
fechá-la.
Ela quer esmagar a beleza do coração que pulsa,
a beleza,
ela quer parar o coração do pássaro.
Eu não resisto e esmurro fortemente o chão,
deixando que o sangue dos meus dedos se misture ao do
coração dilacerado.
O pássaro emudeceu e não me olha mais.
Então eu sepulto seu pequeno corpo sob todas as formas
que tenho
de gritar em silêncio.
Babilônia
Estou na casa do sempre
quando abres teu peito e crias imagens que reconheço profanas
desde tempos
atrás, o tempo do retrovisor, um pretérito,
outras formas de vida, suor,
uma arfada,
gametas e cigarros,
de memórias hieroglíficas,
dos símbolos: uma palavra é desenho com som.
Agora faz de conta que somos fluentes; que deciframos
a linguagem das caixas torácicas. Faz de conta
que já pronunciamos todas as
falas que dominam os gestos;
que já percorremos
todos os traços feitos por meus dedos em teu corpo.
Depois saltamos — juntos e destemidos —
na grande fornalha de fogo
que é teu coração-babilônia pulsando exposto.
IV
Os pelos de uma mulher crescem tão silenciosos
que
não sabem deles os grandes debatedores políticos,
os educadores de biologia,
os poetas inspirados pelas musas.
Nenhuma legislação precisa ser criada para que os pelos cresçam inabaláveis,
não precisam de autorização para tomarem o corpo como se conquistassem um reino.
Não escutaram seus ruídos os compositores que foram capazes de finalizar o Réquiem,
não são perceptíveis aos cineastas iranianos nem cabem no silêncio do menino Antoine Doinel olhando as franjas das ondas.
Os pelos brotam no rosto de Clémentine Delait
sem que os bichos sintam inveja, sem que um gato se arrepie diante do mistério,
Senhoras Doloridas enfim não precisam inventar encantamentos para seus rostos de cavaleiros.
Os pelos de uma mulher crescem tão silenciosos
que
somente ela os sabe
quando se observa e se acarinha,
a aspereza das pontas abrindo os poros.
Algumas profecias dizem que
todas as vezes
que uma mulher corta, raspa ou depila seus pelos
— tomando para si o disfarce da lisura —,
seus restos descem pelo ralo e alimentam os monstros que um dia invadirão o mundo.
As rezas que inauguram o dia
Há algum tempo eu me convenci de que poemas estão no início e no fim.
Então me levanto pela manhã
com metáforas enroladas na língua; com visões plenas de abismos.
Não respondo um bom dia sequer,
mas já repeti dois ou três versos em silêncio, um ritmo mental,
a incandescência do dia.
O poema do início, uma fundação.
Quando as lutas se acalmam e se abaixam as espadas,
eu volto ao poema em busca do fôlego, o fim da fadiga.
Abro os vãos da casa e avisto um descampado,
infinito campo de unguento.
O poema que é fim de tudo,
o impronunciável: um soluço que interrompe a lágrima.
Manual para ser espectro
Sentar-se na frente do espelho e rasgar os próprios poros com longas unhas,
espalhar o sangue
que escorre.
Erguer as têmporas em direção ao sol,
então fechar os olhos no silêncio honroso da graça,
o milagre
do corpo que se integra: de si mesmo
em si mesmo,
pois em si mesmo uma
reciclagem,
autofagia da carne sendo engolida pelas cavidades de onde se levantam os pelos.
Sentir calafrio, suor e,
finalmente,
desistir de resistir ao gozo.
Meninas que saltam de parapeitos
Algumas meninas se debruçam sobre os parapeitos e observam encantadas outras vidinhas e pequenos afetos. Algumas meninas se debruçam sobre as grades e sorriem com os olhos. Depois se recolhem silenciosas para suas modéstias e sobriedades. Algumas meninas se recolhem.
Eu me deito sobre o vento
pincelando no ar meus dedos de autoridade sobre o recato.
Tenho desejo de gravidade infinita. E me jogo do parapeito das meninas, sorrindo as sobrancelhas e deformando a boca enquanto berro.
[berro, mas não paro de cair].
Eu desabo estendida em nuvens.
Retirada
Vocês me chegam
trazendo uma guerra pronta,
com seus soldados e armas.
E me encontram tão acovardada,
tão eu,
assim
amuadinha.
Ainda acho lindo ver o sangue untando a espada,
o suor diluindo o sangue,
o barulho da lâmina cortando o vento.
Mas ando tão débil. Ando tão branda.
Tenho amado muito mais a bainha.
O silêncio secreto dos bordados na bainha.
Putas
Elas passam pelas ruas de todas as horas arrastando pedaços de seus corpos anteriores,
pedaços de suas trompas,
suas pontas de astros.
Passam altivas carregando o peso de antigos seios de tantas mamadas,
braços marcados por unhas e barbas,
genitálias explodidas por muitos nãos que foram ditos entre berros,
cabelos enozados por coágulos e vômitos cuspindo dentes.
Caminham juntas, passo a passo, cantando dolorosamente sua elegia da carne viva, enquanto as ruas as observam
quase vivas,
garantidas por um mandado de segurança: cem metros de distância
e maquiagens de alta definição — uma renovação pela graça de grandes laboratórios dirigidos por homens cientistas.
As boas pessoas que assistem ao cortejo rezam de cabeça baixa pedindo
a benção do esquecimento, mas as mulheres seguem
ensanguentadas
em direção ao espaço reservado aos que pagam penitências e culpas: putas!
Também há dilúvio
Você fica bonita, assim, quando atravessa a rua segurando o guarda-chuva. O punho na altura do peito, quem olha de longe acredita na sua força. Ou em algo de conforto nessa sua existência acomodada no cinza, os olhos de raio.
Um corredor se desenha nas calçadas, a barra da calça levemente molhada e seus pés chutando lantejoulas no mundo. Você não corre, sequer se apressa. Porque você sabe da sua beleza, entende os códigos do silêncio de quem corta o vento acarinhando-o. Você estudou a cromoterapia dos dias melancólicos, inventou versos pra eles, que te namoram desde o dilúvio.
O barulho da água no asfalto me lembra do jeito como você puxa a saliva quando fileta o dedo nas páginas finas do seu caderno de poemas, o caderno secreto dos desejos: um peito em flor, eu li uma vez.
Eu fico parado como se um quarteirão fosse um universo e você, cabeça meio coberta pela lona preta, está usando uma blusa vermelha na neblina. Então segue sangrando entre corpos quaisquer, entre jaquetas e capas sem cores; você atravessa portais e vem na minha direção.
Eu nunca tinha visto cena tão triste e bela e chorei. Tentando segurar o choro, chorei mais.
— Parece que a chuva te faz bem. — você me disse antes de entrar no carro e acender um cigarro.
Da incapacidade de matar o poema
Você mira a boca aberta do poema e mete nela meia dúzia de tiros;
Você observa a ontologia do poema enquanto espana o ar com as mãos para dissipar a fumaça dos tiros;
Você quer se vingar da arrogância do poema que decorou as sagradas escrituras do seu tórax;
Mas você mal suspirou aliviada e o rabo do poema já concedeu a ele um novo corpo de matéria pegajosa.
O poema rasteja e imobiliza seu assombro quando você dá de cara com o fenômeno:
O corpo asqueroso do poema é sua própria mão.
março, 2021
Samantha Abreu (1980) nasceu e vive em Londrina. É professora, produtora cultural, mestre em estudos literários pela Universidade Estadual de Londrina. Publicou os livros Fantasias para quando vier a chuva (2011); Mulheres sob descontrole (2015); A pequena mão da criança morta (2018) e Debaixo das unhas (2020). Integra as antologias O Fio de Ariadne (2014); 29 de abril: o verso da violência (2015); Um dedo de prosa (2016); Sob a pele da língua (2018); Marco Zero: prosa e poesia londrinense (2020); e As mulheres poetas na literatura brasileira (2021), com autoras de todo o país. Também já foi publicada em sites e revistas literárias e teve textos adaptados para o teatro. Faz parte do Coletivo VERSA, que pesquisa e divulga a literatura produzida por mulheres, sobretudo londrinenses. Em 2020 recebeu o Prêmio "Outras Palavras", da Secretaria de Cultura do Paraná.
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