©lukas martynas janoszek

 
 
 
 
 
 
 

Biografia



Nasceu magro, aquém. A tia não era dada a cuidados. Esse não dura uma semana. O horror da mãe, ainda no hospital. O pai batia sineta na escola, enquanto terminava os estudos. A mãe comia laranjas e melado, mas não eram desejos de grávida. Voltaire chegou tão mirradinho, que ali mesmo o batizaram. Após esta entrada triunfal, qualquer um toma gosto por histórias fortes. Morreria escritor.


Confiança



O pai e a mãe ao redor de uma pedra redonda de granito, três as filhas. Elas subiam na pedra, deixavam-se cair de costas, e o pai as salvava. A menor, numa das vezes, olhou para trás, insegura. Então o pai falou, olha pra frente, fecha os olhos. Ela fez, e se deixou cair, livre de ter de confiar apenas em si.


Lição



Desenhe um quadrado. O professor caminhava entre as mesas e espiava os cadernos, para garantir os rigores da forma:

— Isto é um quadrado? — apontou para o círculo.

— É que eu soprei nele — disse o menino, balançando a cabeça de alto a baixo como se não fosse mais parar.


Perigo



Por um instante, a filha endereçou o olhar ao infinito, e a mãe, que não podia mais acompanhar o que ia por dentro de sua menina, perguntou, um tanto irritada, se ela estava pensando ou o quê? Desconfortável, a mosca do teto entrava em contato com o terror, do qual passaria, irremediavelmente, a fazer parte. Nada que a amiga da mãe desenvolvesse faria sentido para uma ou outra. Então, para resgatar a filha e salvar o que restava da mãe, ela apenas disse: pensar é bom.


Estética



A sobrinha apontou a lua cheia entre os prédios, "olha, que linda". Altamiro fez que sim, concordando. Ao darem com um ex-carpinteiro de rosto vincado, ela segredou para Altamiro, "bonito, né?" Ele fez que sim, concordando. Mas quando uma passeata cruzou por eles, reivindicando lâmpadas para os postes do bairro, com gritos de mais luz, mais luz, ele proferiu sua iluminação: "taí beleza difícil, porque nova". Marília fez que sim, discordando: "tem duzentos e tantos anos!" Terçava por luz própria, como a passeata: "difícil pra quem?".


O boné de Levi



Não estava muito frio, mas Levi saiu com o boné. Anoitecia, crianças ainda brincavam pelas calçadas. Deu com um grupo de jovens militantes. Braços nos bolsos, estreitava o casacão contra o peito. "Com o boné do Lenin?", brincou um deles, sugerindo alguma afetação. Quadras depois, um professor de filosofia reagiu satisfeito: "E esse boné existencialista?", ao que se seguiram palavras como Greenwich Village e Albert Camus. Levi se dirigia à casa dos pais, para jantar com eles. "O boné do teu avô!", disse a mãe ao abrir a porta, emocionada, brindando o filho pelo que evocava. "E eu que pus o boné para ajeitar os cabelos", muxoxeou Levi.



[De À linha d’água do rio, livro de minicontos, poemas em prosa,
observações crônicas e pequenas ficções, em processo de edição]



junho, 2021



Sidnei Schneider é poeta, ficcionista, tradutor e ensaísta. Publicou De rua e sangas, Andorinhas e outros enganos, Quichiligangues, Plano de Navegação, Versos Singelos-José Martí. Editor do projeto "Ler para ver além" da União Metropolitana dos Estudantes Secundários de Porto Alegre (UMESPA), que debate e distribui 10000 livretos por edição nas escolas públicas de Porto Alegre.


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