ante
ante a lágrima arredia
ante a súplica da alma
ante a lassidão pétrea
ante a colossal tontura
ante o rumor derruído
ante o nervo sanguíneo
ante o agudo alvéolo
ante o áspero clarão
ante o iniludível flerte
ante o inaudível falsete
a esperança é grotesca
por desoras
que seria do milionésimo
segundo se depois fosse
fado solo à espreita todo
retorcido por denso sono
subtraindo-se à pele lume
que evanesce ao supremo
toque para torná-lo ainda
mais insosso e impassível
pálpebras que amolecem
solertes pétalas de livros
a quatro chaves o destino
submisso qual batimento
deste átomo a esquartejar
sem perdão por desoras
as palavras exigem pudor
sei, as palavras exigem pudor
trespassá-las no livro o livro
todo ardiloso e dissimulado sei,
sei, as palavras exigem pudor
poesia é vilania por tanto e tão
pouco se repleta de impurezas
sei, as palavras exigem pudor
usá-las no extenso do verso é
desconhecer mistério e poder
sei, as palavras exigem pudor
impunes há que revirá-las sei,
sei, de per si purgam qualquer
senso premeditado impondo
o que jamais fora (tá lá! ora)
palavra alguma é inoxidável
submerge sim à estafa do ofício
finados
sei
muito bem
onde você
está
sei
muito bem
aonde você
não está
dublagem
Ela – Chame um médico que eu vou morrer!
Eu vou morrer... estou sentindo...
Vou morrer! Meu peito está fervendo...
Voz (off) – Que morrer... Não se morre assim...
24 horas depois, a imagem dela "congelava".
Diário de Mara (VII)
"Esquisito. A cada dia estou alcançando
mais a idade da minha mãe.
Do pai, jamais".
E vice-versa
A vida é um brinde da morte.
o outro
Montaigne: índio é feliz
Sertanista: índio quer neocid
Custer: índio bom é índio morto
Posseiro: índio morto é bom porto
Pastor: índio é sátrapa
Exército: índio é apátrida
Raoni: índio quer carabina
Caiapó: índio quer concubina
ONG: índio quer nação
Garimpo: índio quer aluvião
Igreja: índio quer hóstia
Índio: o branco é sósia
ração do Brasil
para Oscar Gama Filho
um país cármico
um pai banido
um pai gálico
um país perdido
um país paraíso
um pai madrasto
um pai cediço
um país casto
um país óbice
um pai códice
um pai galant
um país soi-disant
um país gabola
um pai palrador
um pai preador
um país carola
um país anárquico
um pai carnaválico
um pai psicótico
um país entrópico
um país uterino
um pai órfico
um pai latíndio
um país ladino
um país azado
um pai acaso
um pai banzo
um país banzai
um país cordial
um pai canibal
um pai sem país
um país sem pai
o ícone ínfimo
só dorso de luz
nada que atordoe
o fio do fundo
nada que turve
a aura mínima
só pura abulia
nada que perturbe
o eco do fugaz
nada que urgente
o átimo imerso
só voo mortiço
nada que perfure
a nódoa cerúlea
nada que arruíne
o ícone ínfimo
54
cinquenta e quatro ratos anos
cinquenta e quatro atos de Satã
cinquenta e quatro fatos soezes
cinquenta e quatro vezes em vão
cinquenta e quatro mil revezes
cinquenta e quatro feitos ruídos
cinquenta e quatro rotos senões
cinquenta e quatro sonos puídos
cinquenta e quatro azos demãos
cinquenta e quatro choros de luto
cinquenta e quatro anos mui puto
silenciário
silêncio
canivete
suíço
silêncio
garrote
vil
silêncio
haraquiri
zen
silêncio
cárcere
privado
silêncio
bala
dundum
silêncio
bolo
fecal
silêncio
praga
vodu
amor
silêncio
fake
olhos fechados
dor
horror
pudor
afeto
despeito
de medo
de sonho
desprezo
bronze
sorte
corte
morte
olhos fechados – fachadas
leminskaia
de nada adiantou
afrontar a desdita
blefe de arcanos
de nada adiantou
agoniar premonição
ventania de sinas
de nada adiantou
desatar a escrita
pés de trapézio
de nada adiantou
sonegar a intuição
pororoca de signos
de nada adiantou
agourar o destino
doma de rastros
os motes da sorte
consorte da morte
Eu também
Eu, também, canto a América.
Sou o irmão escurinho
Quando chega alguém,
Eles me mandam comer na cozinha
Mas eu rio,
Como bem,
E fico forte.
Amanhã
Sentarei à mesa
Quando chegar alguém.
Então ninguém se atreverá
A me dizer:
"Coma na cozinha".
Aí eles vão ver como sou bonito
E ficarão envergonhados.
Eu também sou a América.
Cruz
Meu pai é um velho branquela
Minha mãe é uma preta velhinha.
Se alguma vez xinguei meu velho
O xingamento sobrou pra mim.
Se alguma vez xinguei mamãe
Desejando que fosse pro inferno,
Me desculpo pela vontade malsã
E agora o meu desejo é terno.
O velho morreu numa casa bacana
Minha mãe morreu num barraco
Onde será que eu vou morrer,
Não sendo nem branco nem preto?
[Do livro Silenciário. Editora UFSC, 2021]
setembro, 2021
Sylvio Back, cineasta, poeta, roteirista e escritor. Autor de trinta e oito filmes (doze longas-metragens). Em 1986 foi publicado o seu primeiro livro de poemas, O caderno erótico de Sylvio Back (Tipografia do Fundo de Ouro Preto-MG). Seguem Moedas de luz (São Paulo: Max Limonad, 1988); A vinha do desejo (São Paulo: Geração Editorial, 1994); Yndio do Brasil (poemas de filme. Ouro Preto-MG: Editora Nonada, 1995), boudoir (Rio de Janeiro: 7Letras, 1999); Eurus (Rio de Janeiro: 7Letras, 2004); Traduzir é poetar às avessas (Langston Hughes traduzido. São Paulo: Memorial da América Latina, 2005); Eurus bilíngue (português-inglês. Rio de Janeiro: Íbis Libris, 2006) e kinopoems (e-book. São Paulo: Cronópios Pocket Books, 2006). Silenciário (Editora UFSC, 2021) reúne sua obra poética, incluindo o livro A maior diversão, até então inédito. Tem igualmente editados ensaios, contos e roteiros de seus filmes. Filho de imigrantes húngaro e alemã, nascido em Blumenau (SC). Ex-jornalista e crítico de cinema, autodidata. Com 77 láureas nacionais e internacionais, é um dos mais premiados cineastas do Brasil.
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