©hans braxmeier
 

 

 

 
 

 

 

 

Elegia Reduzida



Dorme como se estivesse desperto,

vagueando por cidades inóspitas.

Trabalha com pouco efeito. Destoa.

Caminha com a cabeça

caçando coquinhos, centavos, miudezas.

Não olha nunca as pessoas no rosto.

Arrasta o próprio charque

pelo mundo, esse vale de plásticos.

Alcança em tudo o medo de morrer.

Aguarda o dia do juízo final

com algumas folhas,

como se fossem bombas atômicas

prestes a calar o mundo todo. Falha.


O fim do mundo não chega.

A carroça em que viaja apalpa o caminho

com ternura. Você não pode impedir

o que quer que seja. Passa os dias cantando.







Casulo



Esguicho palavras dentro do casulo.

Você e seu séquito de insetos pelejam.


A sua espécie não sofre de metamorfoses.

Nasceu já desenhado para o futuro.


Mortifico-me. Sacrifico as patas.

Coagulo no seu colo,


enquanto canta em meus ouvidos.

Soa como uma cigarra psicodélica.


O bafo do teu canto

aquece o meu sexo. Desperta-o.


É quente. O sol não vem.

Mas o dia está aqui.


Sonho com um voo definitivo,

que também não chega. Avante: sibila.


Espicha os dedos, mas não me toca.

A voz não me alcança o corpo. Reduz.


Para que tudo desperte, morro.

Mas você não deixará de percorrer o mundo.


E em algum momento da vida,

encontrará, no mais estreito dos vãos,


talvez debaixo de um graveto,

as palavras introduzidas naquela noite.


Cruzo as asas e me deito. Se viesse, teria 

de acordar meu outro corpo já saudoso do seu.







Rés Rês



Não se descansa neste teto

mas se almoça e se bebe,

não se ri, mas se dança,

não se enrosca, mas se empalidece,

não se corre, mas se manca,

não se diz certas coisas

mas se atormenta com passos;


não se mede os termos,

não se calcula as preces,

não se funde os nervos,

não se avalancha sobre nós

os dias de cão e cebola,

mas há vida, sim, e cipós

que crescem à medida


em que nos entristecemos;

as mãos se levantam, escuto

esculachos, a pólvora se agita

depois os sovacos, sudorese,

desânimos, e mais coisas

quebradas ao alcance dos dedos;

não se felicita nesta casa, onde


as vias aéreas se trancam,

onde as portas são passagens

entre esta vida e a outra;

mas, num domingo, muito cedo,

em que as camas dormem

e as pessoas se assemelham

ao conteúdo das manjedouras,


ou mesmo aos pastos, em orvalho,

sonha-se com capelas no meio

da noite, casas de sapé e taipa,

nomes antiquíssimos, cobras,

mugidos, apelidos, assombrações;

não se descansa nesta casa, em

que viver é tanger caminhos de rês.







Palmas Bentas



Atravessamos as léguas não contadas

com a obediência incitada

pelas águas, 


que sussurram em nosso

ouvido algumas estórias

e botões,


cujo peso, e as idas ao terapeuta

haviam de ter tornado

tudo pior,


mas que, com um gesto das mãos,

pude, como deveria,

suportar.


E agora, como antes, as coisas aliviam

um pouco a cada dia,

até ficarem


muito mais dissidentes, revoltosas,

ou até mesmo calmas,

como deve ser.


Você sorri para mim como se eu

fosse um fotógrafo

atirando:


o mundo inteiro corresponde

ao nosso desejo, e infarta, 

e revê estrelas


caindo do céu, como se fossem

grãos de farinha

polvilhados


sobre todos nós. Querido, querido,

como tem sido duro

andar por aí


esquecido de mim, de nós, e das coisas

todas que nós combinamos

de não esquecer.







Portaria



Estava cego e podia 

ver o outro mundo.


Estava frágil e tinha 

a força de negar-me. 


E ser seduzido. Estava 

só, mas acompanhado 


de muitos chamados. 

Estava perdido e sabia 


exatamente onde 

terminava aquela via.


Por isso a boca se parece

com a porta de um inferno


se alongando dentro

do corpo, que se espreguiça


diante do que toca, vê, 

consome. Por isso as estátuas 


derrubam água pela boca: 

para reduzir-nos àquilo 

que escoa do fogo mas 

se converte em gelo.


Estava longe e próximo.

Estava morto e desperto.


Estava ali e estava do lado

certo. Estava como apátrida.


Uma coisa se sucedendo

a outra: conhecer os mares


através do som das conchas;

as estrelas por sua jornada


até nós; as abelhas pelo mel

do mel; as flores pela estação


que as envenena; o ar por aquilo

que é sufocamento; a vida


pelo que se restringe ao torpe.

Esse mundo roto inferno largo.







Carta para Al



O mundo ainda está de pé, Al,

e o coração dele pulsa em uma 

parte desconhecida. A fisiologia 

do mundo, Al, é diversa; mais

a frente de nós, outros. Você 

e seus passos, Al, cruzam bem 

no meio de mim, com algum 

custo para os meus ossos. Em 

tudo que vê, ou toca, ou muda 

de lugar, a mim me diz. Mas 

a vida e seus pesares, querida 

Al, estão sobre o que se deita na 

cama conosco. Você perfez o 

caminho do quarto, Al, com a 

sabedoria dos pássaros guiados 

por si mesmos e pela própria 

fome do mundo. Al, querida, 

você vive como se pudesse 

modificar as paisagens que, 

um dia, te circundaram o corpo 

enxuto. Te peço, Al, vem me 

mostrar o que você viu há muito 

tempo, pois todas as coisas que 

vi são insuficientes. Al, meu  

bem, onde está agora o seu olhar 

percorrido? As bochechas altas? 

Onde reside teu bem, Al? Aí 

estarei: ao pé de um pouso seu.







Transatlântico



Quando olho o mar, das dunas na praia, 

vejo um Atlântico de nome

amplo, mar e enterro internas

colisões. Mas avisto como se as distâncias

fossem todas ausentes, e a tua ausência

se transformasse em água. A ti te vejo

além deste oceano inteiro de sal e algas,

me olhando de volta, na outra margem

do mundo. E somos nós dois como duas

palavras estrangeiras a procurarem-se.







Depois



Proibir-se de suas obsessões não fará nascer coisa alguma

que seja diferente disto, Começar por começar,

Dizer, Amolecer os copos de vidro em líquidos,

De nada adiantou recorrer aos amuletos, inúmeros,

Sei disso por convicção e medo, Eu que andei sempre

sem apetrechos, agora amorteço-me senão,

Vi uma pessoa possuída contorcer-se na cama,

quebrá-la depois, Tive de dormir ao seu lado,

com o peso dos anjos da guarda, Tive de encontrar meios

de adormecer, essa prática da confiança, Depois resumi-me

em dias cortados em pílulas, dormidos aos saltos,

suores e insônia, e aquela presença sombria,

De nada adiantou possuir velas e terços e predicados

Ressuscitei a terceira geração da casa,

aos gritos, e a todos que dormiam o sono da morte,

para desculpar-me do medo, para me desligar-me de mim mesmo

E se depois a casa tornou a empalidecer na noite,

foi porque abandonei tudo que tinha para trás, Segui







Das coisas que não se diz



Para L. Bergamo



Para salvar-me de você, me lanço.

Da ponte não quero. Do parapeito

desgosto. Para salvar-me de você

me lanço na sua direção. Ou pelos

caminhos por onde passou sozinha,

agora. Só pra salvar-me de você eu

precisei de um gesto. Eu, que sou

dado à inércia. Eu, que gostaria de

chorar calado, no mesmo lugar. Mas

para salvar-me me ponho em ridículas

pernas, bambas. Mas fadigo de andar

quilômetros por você. Cansei de ser

ouvidos. Cansei de ser eu mesmo.

Cansei de você ser você mesma.

E essa permanência arrebenta

com o que restou da minha vida. Os

olhos despencam. Emplodo o orgulho.

E vou. Só para salvar-me de mim mesmo.







Homens vãos



Para Rafael Mendes



Homem de vida

vaga. Vãs delícias.

Vãs. Você me olha

e não me vê.

Você me olha e sou

um relâmpago. Você,

caso me olhasse,

veria a si mesmo

entumecido. Você

não me vê e isso

me mata. Até que

um dia não seja

mais possível morrer.







Da última vinda



Para Ricardo Leão



Motorista, dê-me tempo

antes de alcançarmos

a cidade em plena alegria,

com janelas abertas e acesas,

pessoas na rua, carros atrozes.

Dê-me tempo, motorista,

aqui, de atrás das cortinas

com a cabeça nessa janela

onde me apago,

onde sou menos,

de não habitar um ponto fixo

nessa geografia que meus

olhos desmaiam ao observar.

Sofro pelo que não se sofre

mais. Motorista, alongue

os meus caminhos.

Demore-se. Não quero

chegar a parte alguma.







Dias contados



Um mundo que não termina nunca de acabar.

As foices estão bem guardadas. Assim os martelos.

Minha voz

de cloro

decola

com muita dificuldade. Vai cair no meio do calçadão.

No centro da cidade sitiada. O mercado municipal

está esgotado de desejos. Os filósofos têm pensado muito

antes de existir. Os profetas têm se esgoelado

com muita avidez. Caberá ao povo

rasgar as vestes e fugir para as montanhas?

As montanhas estão com os dias contados. Mas.



[Poemas inéditos]

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Pedro Moreira é poeta. Nasceu no interior de S. Paulo, em 1995. Editou o blogue literário Idê. Publicou a coletânea de poemas intitulada Malemá (Patuá, 2021).


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