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RUDE VERBUM



Já não me reconheço

na argila 

de onde vim.

Nem na costela do Verbo,

esse, 

que me cravou 

na carnadura dos lábios 

essa gramática 

que assombra. 


Porém, é ela 

quem arrasto comigo 

atada à língua. 

É ela quem me açoita 

e me assalta, 

quem me afronta 

e me abrasa 

em fonemas 

que me ruminam. 


A quem entrego 

este pássaro ferido? 

E, com ele, 

estas mãos 

sujas de letras.


Sou eu os silenciados, 

carne 

da própria carne, 

osso 

do próprio osso. 


Por mais que eu sue, 

e sangre, 

e ardendo busque 

nas entranhas dos teus verbos 

(não o que há 

de amargo, mas 

o que há de doce)


sou para ti, ó palavra, 

como se não fosse. 








ESPELHO



Inútil rasgar o tecido das manhãs 

como se fosse 

tua carne. 


Ater-me 

ao que é pálido. Atar-me 

ao que é ácido. 


Entretanto, canto, 

aceso em tua vertigem. 


E busco, 

no fogo do açúcar 

que arde em tua saliva, 

as flores de incensos

que brilham. 

As brasas 

dos incêndios que brotam. 


Minha garganta é esse abismo 

de sustos 

em que surtam 

teus fonemas. 

Essa estrela desbotada 

a grafar 

teus anseios. 


Guardo em mim 

a voracidade dos anjos 

que reinam 

em teu Hades. A frieza 

do tigre 

a espreitar sua presa. 


Em que sórdido 

silêncio 

reverbera 

essa imagem de águas 

em que te vejo? 


Já não sou mais teu reflexo. 

Sou o próprio espelho. 







REVERSO



É aqui que alimento 

os estigmas 

herdados ao longo dos anos. Aqui, 

onde costurei palavras 

líquidas à língua. 


Impiedolorosamente

masoquisto-me,

farpando versos 

que me ferem a boca, frases 

que ejaculam verbos, 

verbos

que versam vértebras, 

vozes

que rangem 

e raivam-me 

ao ócio do silêncio 

em cio. 


Aqui, onde o espaço 

se encaixa à tua arquitetura, 

a girar nos velozes 

vórtices 

das vertigens, 

falo do que me arranca os olhos, 

do que me sangra a alma,

enquanto acendo pássaros 

nas manhãs 

que desinvento. 


Reverso de mim mesmo, 

fiz, do homem que fui, 

não um santo, mas uma fera. 


Já não sou fuga nem espanto, 

sou espera. 







TRIZ



Nas manhãs multiformes

dos espelhos, 

meu silêncio é essa dádiva 

a escorrer

por entre os lábios. 


Cingiram-me às tempestades 

desses verões impiedosos. 

A esse tempo onde o Nada

é a senha 

para o sangue. 


Vim escaneando teus passos 

em meio aos delírios 

de borboletas despedaçadas.

Ao ritmo

de ritos 

e atabaques ancestrais 

onde a pele 

pulsa

em melanina. 


Minha pele

é uma dádiva 

(não uma dívida)

a tingir de noite 

o teu silêncio. 


Estou em chamas 

de tanto contar estrelas. 

Sou calendário 

preso aos teus dias. 


Porém, quem me redime

do crime que não fiz?


Se escapo 

(e sobrevivo)

é por um triz. 







ANTES QUE O VERME O FAÇA



É preciso comer a carne 

antes que o verme 

o faça. 


Antes que o tempo 

que a tudo 

amordaça 

corrompa o tênue 

tecido da pele 

que se esgarça. 


É preciso comer a carne 

antes que o verme 

o faça. 


Antes que a vida

corroída 

pela traça 

se renda ao eco 

oco do vazio 

à ameaça 

do fúnebre 

barro frio 

e, sem remédio, 

retorne ao Nada 

e se desfaça. 


É preciso comer a carne 

antes que o verme 

o faça. 







DESEJO VERBAL 



Deságua em mim 

a metáfora dos teus lábios 

nesta tarde 

adornada de amoras. 


Na pele que pede 

silêncio 

ao burburinho 

do sangue que me ferve,

o fio que teço 

tece a trama 

que subleva tuas trevas. 


E sigo 

adicionando vírgulas 

por entre as reticências 

do teu corpo. 


Acendo em mim 

esse desejo camuflado 

nos cetins 

que escondem 

tua carne. 


Insisto em te querer 

ao som 

desse ritmo incerto. 


E enquanto os lobos 

bebem a minha água 


eu morro de deserto. 







O PÁSSARO



Não é a falta de palavras 

que me represa os lábios. 

Nem a morbidez 

do nunca 

repetido à minha porta. 


É a fúria de teu gesto 

no olho da tormenta. 


No momento em que aportei 

meus navios 

de nuvens, 

teus piratas 

saquearam-me a língua, 

e me deixaram esta 

que não é minha. 


Sou como um pássaro 

mecânico 

a sobrevoar teus abismos. 

Um inferno sem retorno 

a arder 

em tuas vísceras. 


Eu 

que semeei tormentas 

em tua têmpora. 

Eu que espalhei espasmos 

e espantos 

em tua cama. 

Eu que sempre 

me anulei em teus gestos, 

agarro-me 

ao instante de saber-me 

ainda açúcar 

em tua boca. 


Por isso, adoço 

teu hálito 

com frases imprevistas. 


E, enquanto ardes 

em teu leito, 


um pássaro negro 

canta em meu peito. 







SACRO



Mastigo-me em meus delírios 

quando a noite 

atravessa-me em versos. 


Cada frase 

é um gesto de entrega 

à tua pele. 

Cada passo 

esse caminho de águas 

em que me negas. Esse

cais

caiado de maresias.


Atado ao sacro 

que raiva 

e ruge 

em teus lábios,

lavro-me. 


Preso ao sublime, 

sublinho-me. Fabrico-me 

em teu oráculo de letras. 

E quase sóbrio, 

sobro-me. 


Porém, ardo contigo 

em tua lenha 

de lendas.

E sou este verso 

estiolado pelo avesso. 

Esta flor 

desossada 

a macular teu jardim secreto. 


Oh, insânia retida 

nas grades da memória, 


sagrada é a raiva 

que rosna em teu reino!








DO CANTO



Se canto, desdobra-se 

o cio 

do silêncio 

sobre os telhados 

do mundo. 


Nem o Nada 

acomoda-se ao vazio. 

Nem o raso 

ao profundo. 


O que me sobra

de grito, 

reverbera-me 

nas vértebras 

dos versos. Incinera-me 

no vórtice 

das vozes. 


Sólida como a ferrugem 

dos dias, 

ruge,

no ferro do poema, 

a inocência lavada 

nas águas podres do mangue. 


E assim por cantar 

(como se o fizesse há séculos)

a brevidade da vida —

não dos versos, 


trago estas rugas na fala 

e a língua suja de sangue. 







SOBRIEDADE 



Em que língua 

direi teu nome 

aos noiados? 


Em que chão de serpes 

plantarei 

tuas sementes 

de lendas? 


Estou imune 

ao que sangra 

em tuas veredas. 

Ao que singra 

em teus mares 

de estrias. 


Amarga é a noite 

que adoça teu caminho

com sombras.


Em que dia 

em que mês 

em que idade 

irei calar 

o que me grita 

em tua boca? 


Estou ébrio 

de tanta sobriedade. 







MEU REINO 



O meu reino é feito de ausência, 

do sangue que circula, 

e é água.

Da lucidez 

vestida de demência, 

do todo 

que se desfez em nada. 


O meu reino não tem súditos 

nem escravos. 

Não é feito de brisas, 

mas de brasas ,

aonde a noite acende 

os seus cigarros 

e o vento incendeia 

as suas asas. 


O meu reino é feito dos escombros, 

das lágrimas 

das amadas esquecidas. 

Do silêncio 

tecido nos assombros 

das armas, 

armaduras 

e armadilhas. 


O meu reino tem como brasão 

uma faca cravada 

no pescoço 

imaginário 

de um sangrento coração. 

É a dor da perda de quem se amava. 


O meu reino é a minha raiva. 







LENDA



Decifras a fábula 

escrita no relevo 

dos teus olhos. Lá, 

onde a fúria se fez fogo, 

levas contigo

a sede dos desertos. 


Atado ao teu nome, 

os segredos 

dos séculos. A profanação 

do sacro. A podridão 

do cancro. 


Porém, arrisca-te 

a sorver o sumo 

das palavras, a magia 

que delas se extrai 

antes que te faças 

apenas uma lenda, 

um nome escrito 

à força 

e à faca 

numa legenda. 








FRAGILIDADE 



De que fontes transbordam 

as palavras 

quase 

líquidas 

que me lavam 

as mãos e a língua? 


Sob a sua sombra 

sigo 

pelas bordas maculadas 

das manhãs 

bordadas na memória:

esse ontem 

transubstanciado de hoje 

encravado em meus ossos. 


Abandonei a mim mesmo 

tentando traçar

mesmo em trapos 

a teia 

telúrica 

dos versos 

que me fogem. 


Mas são tão frágeis 

ao dano de saber-se vivos 

que quando tento tocá-los 

logo morrem.

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Rodrigues de Senna nasceu em Teresina/PI. É poeta, articulista e compositor (letrista). Apaixonado pela boa arte em geral, é amante incondicional de MPB, Heavy Metal e quadrinhos. Desin-formou-se em Missiologia pela EMAD. Autor dos livros O sal do verbo (2017) e O exercício da fala (2019), edições do autor. Atualmente, reside e trabalha em Palmas (Tocantins), na área de publicidade.


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