POEMAR



O que botar no poema

e o que dele retirar?

Falar em bomba, em cinema,

ou em flor, em chuva, em luar?


Como Fernando Pessoa,

só ver mesmo o que se vê?

Mentir que a vida está boa,

se está ruim como o quê?


Denunciar, engajado,

o que qualquer cego vê?

Pregar ao operariado,

que nunca nem vai me ler?


Esculhambar o soldado

para ele vir me prender,

e eu, herói devotado,

aparecer na tv?


Esbravejar, ativista,

em prol da classe oprimida,

e passar dando entrevista

o resto da minha vida?


Pregar contra a ditadura,

o alto custo de vida,

ou desancar a censura

por minha obra escondida?


Citar Pound, Mallarmé,

Maiakovski, o cacete,

se o povo, em vez de me ler,

vai é batalhar seu leite?


Donne, Lorca, Baudelaire,

Hölderlin, Villon, Rimbaud?

Ser um grande bricoleur

do que se leu ou escutou?


Verlaine, Guillén, Neruda,

Corbière, Rilke, Musset?

Ah! Quanta coisa maçuda

um poeta tem de ler.


Gautier, Eliot, Sand,

Laforgue, Blake, Éluard?

Antropofálgis, noi-grandes,

Processo, práxis, dadá?


Ser um poeta bem pobre

ou nadar no vil metal?

Sá-Carneiro, Régio, Nobre,

Cesário Verde, Quental?


Cecília, Drummond, Bandeira,

Jorge de Lima, Cabral?

Estrelar a vida inteira

no país do carnaval?


Ser um poeta Vinícius,

o grande, o de Morais,

e escrever, por desperdício,

belos versos imorais?


Ser um poeta maldito,

engajado ou concretista?

Uma vivência de mito

ou a dura vida de artista?


Ser declamado nas praças,

nos comícios, pelos bares,

ou desandar na cachaça,

vivendo nos lupanares?


O que jogar no poema

e o que dele retirar?

Escalavrar o morfema,

numa sintaxe de ar?


E o corte epistemológico,

o sintagma estrutural?

Surrealista, gongórico,

hermético, marginal?


Chafurdar no dicionário

ou os rimances de cordel?

Circuito universitário

ou vitrola de bordel?


Que profissão desmedida

para um salário de fome.

Ser funcionário da vida

e escriturário do homem,


Cirurgião do concreto,

intérprete do universo;

deixar sangrar o alfabeto

na carne viva do verso,


passando a limpo o momento,

plantando fundo uma lavra

de fogo, de fúria e vento,

no duro chão da palavra.







ÍNDICE



A Ferreira Gular, em memória



O homem é a matéria do meu canto,

qualquer que seja a cor do que ele sente.

E não importa o motivo do seu pranto,

é um homem, meu irmão, e estou doente


de sua dor, e é meu o seu espanto

do mundo e desta hora incongruentes.

Na trincheira do Verbo me levanto

contra o que contra o homem se intente.


O homem é o objeto e o objetivo

de quanto sei cantar, e o canto é tudo

que pode me explicar porque estou vivo.


Às vezes sou ateu, noutras sou crente,

em outras sou rebelde, em algumas mudo:

— sou homem, e canto o homem no presente.








AMOR-TE



Sou metade de mim, se estás distante.

Menos, até. Metade da metade.

Menos, ainda, porque, na verdade,

nem mesmo sou, se tu não me és antes.


Tua presença em mim é uma segunda

natureza colada à minha pele.

É a força interior que me compele

e o mundo exterior que me circunda.


Sem ti sou um absurdo tão concreto

que mesmo estando em mim, faço-me falta.

E eu vivo por sentir que tu me faltas

porque somente assim me sei completo.







AQUARELA DO BRASIL



A lua

(coitada)

jaz pisada

na sarjeta,

enquanto pela rua

(a gás de baioneta)

passam os homens,

cobrindo o rosto

com a face bisonha


para esconder a fome

o desgosto

a vergonha








MASTURBATÓRIA



O filho que eu fiz contigo

na palma da minha mão

hoje seria um mendigo

ou talvez fosse um ladrão.


Nos roubaria carinho,

mendigaria perdão,

perdido nos descaminhos

do meu e teu coração.


E nos roubaria a vida

e nos pediria mais

que a nossa paz dividida

e os nossos sonhos sem gás.


Mas agora que não sigo,

apenas persigo em vão,

nas covas do meu umbigo

os rastros da solidão,


queima em mim, feroz e amigo

(ardendo no coração),

o filho que eu fiz contigo

na palma da minha mão.







VOLUNTÁRIOS DA PÁTRIA



A Oswaldino Marques, in memoriam



perdemos a tarde

o ônibus

a paciência

e a vida


perdemos a cor

a calma

a voz

o voto

a vergonha


e agora

voltamos pela rua lentamente

livres do peso da nossa dignidade


─ sobrevivemos a mais um dia ─







ME PELEJO NA PALAVRA



Me pelejo na palavra,

esta lâmina malina,

escuma que se escalavra

no mais fundo da oficina,


onde o silêncio se encrava

e acende a safra sovina

no lume alúvio da lava

que imana a mão de que mina.


Constelação de farrapos,

de tripas, tropos e trapos,

pulsar que se despetala


até tatear a trava

da pá, do lá e da lavra,

no veio fulvo da fala.







SONETO 1



A Clóvis Ramos, in memoriam



Deus soprou seu suor nas minhas unhas

e eu vim rodopiar meu torvelinho

nas lâminas do dia, e em seu cominho,

destemperei um sal que eu não supunha.


Deus me plantou florestas de ferrolho,

estrumes de luar nos meus cabelos,

e os galos que hoje trago aos tornozelos

são toques de clarins que não recolho.


Tenho quilos de lágrimas nos dedos,

mas sei de cor meu ser, e os seus torpedos

são cardumes de um mar que me resume.


Não pude contra Deus. E hoje, vencido,

Ele suou seu sêmen em meu ouvido

e fecundou-me em rosas de negrume.







SONETO 30



A Wilson Pereira



Qualquer coisa nascida de si mesma

como um ovo, um poema, uma ferida.

Uma pena talvez, flecha fendida

em trovões coruscando em lã/ma e lesmas.


Qualquer coisa. Excrescente, dissoluta,

fluida, fóssil, falaz, como cortiça.

Manivela ou mormaço, a mó mortiça

do seu grito de gueto, escampa escuta.


Esse inverno vital, vulva que orvalha,

galha oblívia do sestro na navalha.

Uma coisa qualquer. Sabre em saliva.


Qualquer coisa cerzida em urze ou asa,

húmus ubre de rala ruma rasa:

— um verso, esse universo em carne viva.







SONETO 35



A Nauro Machado, em memória



O rato, lá no fundo, ruge e rói

a noite e sua nata de silêncio.

Por sobre a pulsação da claraboia

o rato é o que, concreto, cresce, denso,


e desce face adentro, e dúctil, dói

e cresta, quase em brasa ou asa ocluso,

que é como se roesse em parafuso

o próprio assombro de roer (que rói).


Um rato roto e sujo que ressurge

em si mesmo ou de além, como ferrugem

feroz, que brota em breu do vão da voz.


Só, no silêncio insone, o rato ob/lato.

(A alma, no escuro, escapa e engana o tato.)

Um rato rói os nós do nada em nós.







O LEGADO



A Gabriel



aquele poema

que não consegui,

mas a duras penas

carreguei em mim.


aquela pequena

coisa indefinida,

que não foi poema

nem encheu a vida.


o sol escondido

que não se acendeu.

este não ter sido

que em mim sou eu.







HACÉLDAMA



A Anderson Braga Horta



ó árduo território, onde Te lavro,

semente de clarão, luar de fogo,

e onde me jogo todo e turvo o roubo

da noite-escuridão, oh descalabro


da carne a descascar-me em sangue e lava:

o coração é um sapo, em cujo aboio

a alma se perde, dona, mãe, escrava,

cheirando a trigo e recendendo a joio.


ó árduo território do plausível,

noturna obsessão de luas calvas,

aqui te lavro, Verbo, oh impossível

jaula de vento, canavial das almas.


aqui Te planto, Verbo, neste chão,

agreste como as solas dos sapatos,

para que roas o anzol do coração,

para que cortes com teus dentes gastos


a palma de meus dedos retorcidos,

as lâminas das minhas claraboias,

e planes pelo mar dos meus sentidos

teu brilho de punhal, sangrentas boias,


e mordas com teus olhos fumegantes,

com a luz de tuas trevas pelos flancos,

não só as minhas mãos, mas meus instantes,

e invadas toda a vida, como um cancro.




II



ó carne, lua magra a se espichar

por entre os ossos podres na gamela

do tempo (porto ou pedra?) pó & mar,

vitral de viços, vulvas amarelas,


raiz de solidão, jaula de vidro,

que a vida é pouca (a vida é sempre pouca),

e só nos restam as mãos, nossos sentidos,

para inventar o sol da nossa boca,


para rachar ao meio o que mais seja,

e o que vier que venha (e sempre mais),

que a vida é curta e a morte brotoeja

por trás de cada instante, cada cais,


a tocaiar-nos solta nas esquinas,

a nos chamar do fundo do salão,

cegueira escancarada nas retinas,

punhal atravessando o coração.






A CHAMADA



Quem matou Honestino Guimarães?

Só uma borboleta buliçosa

estremeceu, no sangue de uma rosa.

(Um homem parou, olhou, comprou dois pães.)


Quem na noite gritou com Rubem Paiva?

Dois namorados, preguiçosamente,

encharcados do fogo do poente.

(Uma mulher se abriu, com nojo e raiva.)


Quem se enforcou em nós, com Vladimir?

Uma nuvem mordeu, no céu cinzento,

um lampejo de luz vazado em vento.

(Um turista guardou seu suvenir.)


Quem cheirou diesel com Stuart Angel?

Uma pomba cagou, sem qualquer susto,

na solene altivez de um velho busto.

(Um mendigo afinou a dor no banjo.)


Quem acendeu a noite e decretou

a floresta em tarrafa do terror?

Quem torturou a pátria ensanguentada

e agora cala a cara na chamada?


 





[imagens ©nancy fouts]

 

 

 

Viriato Gaspar. (São Luís/MA,1952). Jornalista profissional desde 1970. Funcionário público aposentado do Superior Tribunal de Justiça. Tem participação em mais de uma dúzia de antologias poéticas no Maranhão e em Brasília. Seus poemas foram publicados em vários veículos nacionais. Vencedor de muitos prêmios literários importantes, tanto em sua terra natal quanto no Distrito Federal. Bibliografia: Manhã portátil (poesia, São Luís/MA: Gráfica SIOGE, Plano Editorial Gonçalves Dias, 1984), Onipresença (poesia, versão incompleta, São Luís/MA: Gráfica SIOGE, Plano Editorial Gonçalves Dias, 1986), A lâmina do grito (poesia, São Luís/MA: Gráfica SIOGE, Plano editorial da Secretaria de Cultura do Estado em convênio com o SIOGE, 1988) e Sáfara safra (poesia, São Luís/MA: Gráfica SIOGE, Plano Editorial da Secretaria de Cultura do Estado em convênio com o SIOGE, 1996). Tem, no prelo, pela Editora Penalux, de São Paulo, os livros Fragmuitos de mim (antologia de sua obra poética) e Onipresença (versão completa). Possui, ainda, inéditos, dois outros livros de poemas — Voo Avesso e Lapidação da noite — e um de contos, Ir-me entre os vivos. Está terminando um livro de salmos em linguagem moderna: Sílabas de Fogo.


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