©sguimas
 

 

 

 

Não tentar domar bicho selvagem

 

 

Primeiro

Circule lentamente a solidão

Provoque-a

E depois corra, de preferência sem sapatos,

Mesmo sabendo que ela

A solidão

é muito mais rápida

do que você

Então mostre

à solidão

os dentes que rangem à noite

Mostre a língua

Áspera

Rosada

Selvagem

E um pouco seca

Permita-se ser capturada

Pela solidão

E quando atravessada e presa

quando perceber: sem saída

Não há, não há como fugir (de si)

Vença pela entrega

Mergulhe

Mesmo com medo

Não há não há como fugir

Por isso,

Seja riso

Aberto,

alto,

frouxo,

leve,

 

E tudo bem se o riso for também um pouco triste

 

 

 

 

 

 

Ritual

 

 

Uma mulher que sangra

e rola

na terra

molhada

a terra e a mulher

de sangue

os sons: do farfalhar de folhas, do caminhar das formigas e do que escorre

de dentro

pra fora

pra dentro

da terra

 

E os pelos e as unhas e as dobras e os vincos e os vazios e as marcas e os rasgos e as sombras da mulher e da terra

O encontro: um ritual.

 

A mulher canta? Cala? Chora?

 

 

 

 

 

 

A musa

(um poema para ler em voz de combate)

 

 

Homens produzem arte ao longo da história (e inclusive a história)

poesias, músicas, pinturas, "mais uma sobre o amor".

 

A mulher-objeto do amor (construído e colocado como natureza)

passivamente deve esperar seu par, um homem

e é inspiração para ele produzir sua arte

genial

 

A mulher-objeto é escolhida por um homem

para viver uma linda história de amor:

trabalho de cuidado não remunerado

violência doméstica

solidão

 

Eu não quero ser a musa de ninguém.

Recuso pedestais,

onde nos colocam nuas e vendadas

Construo a narrativa sobre mim mesma:

Mulher-sujeita

quebrada

e livre (só quando todas formos)

 

Eu não sou só poesia (e sou), sou a poeta.

 

 

 

 

 

 

Ergueu-se o arco-íris após longa tormenta

(em memória de emily dickinson)

 

 

I -

uma moça séria

os olhos e cabelos: escuros

sobre a pele clara

o penteado: rígido

a cabeça: rompida

ao meio

as vestes: duras

 

e o olhar distante

como quem,

fora de seu tempo,

fora de seu espaço,

 

usa as palavras

— aquelas mais intensas e macias —

para falar de amor.

 

(um assombro!)

amor proibido e apagado

por especulações, violentas, tantas,

 

os nomes de mulher

riscados

somente nas costuras de hoje

reaparecem na história

 

 

II-

vamos comer emily

para que amores como os nossos

sejam possíveis

 

 

 

 

 

 

Fobia

 

 

o mundo sente muito medo de mim

e por isso tenta me matar

 

dizem:

não existo

 

sou um ser errante

uma confusão de cálculo

que logo vai se acertar

ou

desviar

de vez

dizem:

é mentira

 

eu os engano

(não) é possível

um desejo dançar assim

 

o mundo sente muito medo de mim

e até os amigos

me machucam

com suas réguas

 

eles tiram as minhas medidas

há o certo e há o errado

 

o excesso: não gostam

cortam

editam

melhor assim

 

eles tiram as minhas medidas

dizem: não é dor

dizem: não é amor

 

o discurso é claro (branco, quase transparente):

é sobre a liberdade de amar

 

mas eis

a lista e os requisitos

de como

se pode desejar

 

 

 

 

 

Às ausentes de referências

 

 

Passei a vida contendo rio com as mãos

Tarefa impossível

e malfeita

 

 

 

 

 

 

O bicho

 

 

Um bicho enorme atravessa a rua no centro da cidade

tão cotidiano quanto o foto-na-hora-foto-vendo-ouro-compro-cabelo

um pouco maior do que o pirulito da praça sete,

faz uma sombra estranha no encontro das avenidas

e caminha lentamente ao lado daquela placa que diz

proibido virar à direita, proibido virar à direita

 

se o bicho não vira a direita, para onde ele vai? para onde é possível ir?

 

será que os carros param, será que o mundo se suspende, será que as pessoas interrompem a corrida e descem do ônibus pra ver?

será que ao acordar de repente com um susto assim as pessoas

param pra ver o que nunca foi visto

 

ver o que nunca foi visto

 

e para onde ele vai?

 

 

 

 

 

 

O propósito do teatro

 

 

Espantar fantasmas e vencer a morte,

ou morrer várias vezes (todos os dias e duas vezes aos sábados e domingos)

 

resistir a este governo

aqui e agora

de cara voltada para o público

 

transformar a poesia

em voz

e gestos

e com isso

colocar o corpo no centro,

provocar fissuras com

o conhecimento instalado no corpo

 

questionar a gravidade, as normas, os usos do espaço,

tecer rupturas, afetos, prazeres

 

olhar nos olhos e

desafiar o mundo

a ser outro

 

correr em direção a…

segurando algo nas mãos

talvez

outras mãos

 

reunir desconhecidos para

prestar atenção na vida

compartilhar a experiência

de ver a sopa engrossar,

os corpos se embolarem nus,

o enigma,

ação, pulsão, dança,

grito.

silêncio.

 

não lembramos os rostos de quem senta ao lado,

cara voltada para o palco

mas somos nós-outras, carne, coletivo,

respirando o mesmo ar,

compartilhando o assombro diante do mistério

 

e pelo teatro,

convidadas a

pensar o impossível

 

 

 

 

 

 

Sozinha

 

 

I - Habitar a casa

em silêncio

saboreando o tempo

que se abre: desdobra

em medos. angústias.

Mas também — prazeres

tão banais quanto

deitar na cama em posição diagonal

sem saber qual é o dia do mês

ou a hora da madrugada

em que chega o poema

 

II- Massagear os dedos com a

caneta que range

ao encontrar a folha

Ruído solene: companhia

 

III- Usar a madrugada para

pisar o texto com fôlego

(como as uvas nos barris);

deixar o tempo agir.

Ver as palavras ganharem

pequenas rugas,

rusgas,

rasgos

 

 

[Poemas do livro Não tentar domar bicho selvagem. Quintal Edições, 2022]

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Isabella Bettoni nasceu e vive em Belo Horizonte, Minas Gerais, onde atua como advogada feminista, pesquisadora e escritora. Seu primeiro livro, Brincando de fazer poesia, foi lançado em 2008 pela Editora Uni Duni, com poemas para crianças em fase de alfabetização. Participa de cinco antologias, com destaque para Antes que eu me esqueça: 50 autoras lésbicas e bissexuais hoje (Quintal Edições, 2021) e Coleção Desaguamentos Vol. I - Poesia de autoria feminina (Editora Escaleras, 2021). Além disso, integra a equipe do Fazia Poesia e tem textos publicados em portais e revistas como Ruído Manifesto, Tamarina, Mormaço, Declama Mulher, Revista La Loba e Revista Minha Voz. Em 2022, publicou Não tentar domar bicho selvagem (Quintal Edições). Instagram: @bellabettoni.

 

 

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