Sexus, Nexus, Plexus, talvez o Trópico de Câncer, são o que vêm à cabeça, nas raras vezes em que alguém lança Henry Miller numa roda de conversas. Descobre-se que a maioria dos presentes, principalmente os homens, leu tais livros na adolescência. Quando muito nos primeiros anos da fase adulta. Pode ser que sejam as mulheres a citar Anais Nin. Fala-se por alto sobre a revolução sexual, quem sabe alguma observação a respeito das lutas do feminismo, então os pensamentos trazem de volta ao contemporâneo. O silêncio de alguns momentos, são as dúvidas sobre o que se teria sido perdido pelo caminho. Como viemos parar aqui, onde foram se esconder as nossas paixões — as utopias?
Nesse intercurso, pouca gente mencionaria obras mais ensaísticas, ou mesmo filosóficas, de Henry Miller. Fadado a ser descrito como pornógrafo, maldito, controverso... rótulos conquistados pelos seus textos mais famosos, de aparente conteúdo autobiográfico, realmente centrados em experiências sexuais. Seus vários relatos de viagens, estes claramente biográficos, no entanto, ou livros como Big Sur e as Laranjas Hieronymus Bosch, em que Miller discorre observações sobre o comportamento de certas gerações, tendem a ser completamente relegados à indiferença.
Ainda mais raros são os que leram biografias escritas por terceiros sobre o autor. Não que Henry Miller seja leitura obrigatória, mas já que se está conversando sobre ele. E se alguém jogar tal esquecimento lá sobre a mesa no bar: "ora, mas já não tá tudo lá, nos livros que ele próprio escreveu?". Então o comentário, de que alguns dos títulos de Miller, foram censurados por anos em muitos países. Inclusive nos Estados Unidos, onde o escritor nasceu, em uma família pobre do Brooklin.
Talvez se acrescente, como informação documentada, o fato de que durante boa parte de sua vida, Henry Miller dependeu da ajuda dos amigos para se manter. Há os que leem as notas biográficas resumidas dos livros mais conhecidos, sobre os quais a censura colaborou em adensar a aura do tabu. As semelhanças entre as narrativas e passagens da vida do escritor são então percebidas. Nem todos pulam as páginas, a fim de ler apenas os trechos de conteúdo sexual, decepcionando-se ao perceber que, muitos deles, são menos explícitos do que certos escritos do Marques de Sade, de séculos antes.
Algo que pouca gente sabe, porém, é que Henry Miller sempre negou que aqueles livros fossem autobiográficos. Este quem lhes fala, não sabia. Não folheou para chegar logo ao sexo, mas os leu durante a adolescência, em busca desse específico conteúdo. Algo que não vê de maneira alguma como um problema. Mas só com o tempo, foi além da "Crucificação Encarnada" (como o próprio autor se referia à trilogia Sexus, Nexus, Plexus), na leitura de outras obras do Miller. Já interessado em coisas mais, inclusive na biografia dele, de quem nunca foi, no entanto, grande admirador.
Henry Miller afirmava que seus escritos eram "irruptivos assaltos do inconsciente, tais como sonhos, fantasia, o burlesco, trocadilhos pantagruélicos etc., que interpretam a narrativa em caráter caótico, excêntrico, perplexo". Tal fala é facilmente encontrada na internet, mas está presente também em biografias sobre o autor escritas por terceiros. Onde aparecem momentos em que Miller é até mais enfático em se definir como autor de ficção. "Então por que usar a primeira pessoa do singular, também tão enfaticamente, como se tudo aquilo fosse um relato pessoal?" —, poderá perguntar alguém. Por quê? — reforça-se a pergunta, para a qual, aparentemente, o próprio Miller nunca deu resposta.
Com tanta gente sendo obrigada a dar explicações sobre o que é ou não é ironia nos textos que escreve, sobretudo quando fino o sarcasmo, a questão nunca esclarecida pelo autor, parece até natural. Mas mesmo antes, desde sabe-se-lá quando, (talvez seja mesmo parte do ofício), sabemos que atores e atrizes são interpelados nas ruas, como se eles fossem os personagens recém-interpretados em filmes, novelas, peças... O que torna a pergunta sem resposta não só natural, mas normalizada.
Não se debate aqui sobre Henry Miller ter sido tantas vezes caracterizado como egoísta ou autocentrado. Mas é interessante observar que, em algum momento, o autor tomou consciência de que ele era assim descrito. Poder-se-ia dizer: não quis mexer no que estava dando certo, todavia ele tomou consciência de que muitos dos seus pares, assim o consideravam, antes mesmo de ele alcançar maior número de leitores. E, ainda assim, persistiu no tipo de narrativa, que o levaria a ter que dar explicações, a cada nova entrevista, sobre o caráter ficcional e não autobiográfico da maior parte dos seus textos. Para a indiferença dos seus cada vez mais numerosos leitores, que preferiam seguir interpretando biografia em suas obras.
Outro Henri (este com "i"), talvez pudesse ter respondido, ao "por quê" antes enfatizado: Henri Deluy. Mas o pouco que se sabe sobre ele, num país carente de mais leitores, que possibilitassem às editoras lançar mais livros, incluindo boas traduções; e, também carente de melhores salários, conjuntura que permitisse aos leitores frequentes comprar mais livros, dificultou averiguar devidamente, se ele algum dia se debruçou sobre o específico assunto, ainda obscuro, de que se fala aqui.
Recentemente, uma citação de Henri Deluy, de origem francesa e certamente mais difundido na Europa, circulou nas redes sociais. Sobretudo entre escritores, interessados por literatura, entre outros pares, pelo que foi possível perceber. Na ocasião da morte do poeta, em julho de 2021:
"Evitar a decoração e o lirismo/ Evitar o lirismo e a decoração pura/ evitar a decoração e o lirismo puro/ Ir rumo a uma localização mais compactada/ Analítica, menos eloquente. Menos/ convenções, mesmo que rebuscadas/ Mais episódios, abordagens. Menos fórmulas/ Mais observações/ Não contar a própria vida".
Não foi encontrada a fonte, a fim de incluir todas as informações sobre onde foi originalmente publicada, mas a citação foi confirmada como legítima. Aliás, em nada se parece com aquelas frases e ditos, que se atribui livremente na rede à Clarice Lispector, a Fernando Pessoa, a Nietzsche... Também não há cá nessas linhas nenhuma crítica ao poeta Henri Deluy, cuja obra é real e infelizmente, pouco conhecida no Brasil. E sim uma proposta de debate, a partir das frases citadas, bem como das que aparecerão logo abaixo. Estas sim, encontradas inclusive na Wikipédia francês, com fonte lá descrita:
"Dizer que um poeta escreve o que quer é errado. Ele escreve o que pode. Mas escreve com o que ele é".
Se um escritor escreve "com o que ele é" — e um escritor é também uma construção social —, como poderia ele(a) "não contar a sua própria vida?". Ainda que através de uma narrativa ficcional, pensada para figurar distante do que ele vive? E, desconsiderando a chance de o autor ter sido desde o nascimento, impedido de estabelecer contato com o mundo dito exterior? Deixando de lado, portanto, a secular discussão entre Kant e Hume?
Vivências, observações, estranhamentos, estudos, leituras, sentimentos... tudo o que o autor "é", ainda que em forma de sementes, infinitesimalmente que seja, sempre estarão presentes, mesmo que o escrito seja a restrita descrição de uma pedra. No fim das contas, a própria vida sempre estará lá, ainda que o acesso a ela pelo leitor, tenha sido dificultado ou estreitado. Acesso estreito este difícil de construir em textos, ainda que ficcionais, caracterizados pelo tom confessional, de relato pessoal, onde as paredes parecem sempre estar distantes umas das outras, as passagens largas.
O que Deluy propõe ou aconselha com os seus escritos aqui citados, aparentemente contraditórios, portanto, é que jamais se escreva como John Fante escreveu. Ou Jack Kerouac. E Allen Ginsberg, em boa parte dos seus poemas. O próprio Bukowski tão referenciado. Vários dos poemas de Dylan Thomas, seus contos ricos em paisagens atribuídas à sua infância, seriam também desaconselháveis. E, entre tantos outros, Henry Miller, de novo interditado, sem chances para digressões sobre qualidade.
As características do próprio escrito, poderiam denotar mais claramente a separação, entre o que é biográfico e ficcional, sem a necessidade de o autor se explicar posteriormente. Mas não daria no mesmo, ou em textos autoexplicativos, chatos? A adoção de estilos como o caricato, por exemplo, pode ser uma boa ajuda, para resolver o paradoxo. Mas não é que Deluy desaconselha também "decoração e lirismo"? É preciso conhecer mesmo melhor a obra deste autor, profundamente, e também a sua biografia, a fim de não desmerecê-lo nem aos seus leitores, mas também não entrar em parafuso, como se diz.
Seja como for, a nossa grande pergunta ainda não foi respondida: por que a adoção da primeira pessoa do singular, sobretudo em textos de caracteres semelhantes a relatos pessoais, ficcionais, ainda que por autores conscientes de que tal coisa aumentará a probabilidade de seus escritos, serem confundidos com autobiografias, e não desejosos disso? Desaconselhável sabemos que é — que o dissesse Henry Miller! Mas há outras questões, que se pode acrescentar sem grande demora, antes de ir ao ponto final, apenas para ampliar o âmbito do debate: é possível escrever prosa, poesia ou o que for, que nada tenha a ver com a própria vida? Onde está localizada a linha que separa a própria vida do mundo ou, preferindo-se, do exterior? Essa linha impede que uma coisa atravesse a outra? Tal separação, supostamente tão definível, é sadia? Para o mundo, principalmente? Para si, consequentemente? E se as coisas se atravessam, talvez em níveis não cartografáveis do inconsciente, como fazer para separá-las impreterivelmente no momento do criar artístico? Como servir de "instrumento" (quem sabe mesmo maquinal, pois só assim?), que não põe nada da sua visão de mundo à mesa? Ao estudar um dado tempo, uma certa cultura, específica sociedade, um antropólogo ou historiador, faz distinção entre o que é pessoal e o que seria universal? Ou o pessoal é para ele um recorte do universal? Incluindo as obras de arte, independentemente das suas temáticas, estilos, as narrativas de Hunter S. Thompson e Jane Austen, elas não dizem igualmente sobre os seus tempo/mundo e autores?
Muitas outras perguntas poderiam ser feitas. E, assim como sempre haverá crítico para o que for, quem verá excesso em obras que outros interpretarão como carentes de lirismo; quem preferiria menos sentimentalismo, em trabalhos elogiados por outros justamente por causa dessa característica; quem admita ter afinidade, adotar prévia e conscientemente, ou não conseguir fugir de certo "pantagruelismo" em sua escrita, que alguns considerarão genial, outros abominarão e, terceiros, simplesmente passarão indiferentes por ela; assim como acontecerão estas, e outras reações sem-número, perante o mesmo trabalho artístico, pois a unanimidade e o absoluto não combinam mesmo com o subjetivo/relativo; haverá também quem possa interpretar, aprovando ou desaprovando numa dada abordagem, sobretudo de certas temáticas controversas, algum tipo de messianismo. Algo que, em geral, se quer evitar, tanto quanto práticas discursivas como as que censuraram durante trinta anos os livros de Henry Miller.
Rejeitar as práticas discursivas que possam levar à censura, goste-se ou não do objeto de crítica, ficção, biografia, poesia, crônica, ensaio... mesmo que não se aprove, por qualquer convicção pessoal ou gosto, uma suposta mistura entre ficção e autobiografia. Pois nunca acaba bem, como se pode ler na História, quando começamos a interditar formas de expressão. Mesmo as que consideramos recrimináveis, não deixariam de existir, a não ser a partir de um trabalho de educação mais profundo. Quando censuradas, elas apenas se movem para a obscuridade, mantendo-se atentas a qualquer brecha de se tornarem inclusive monstros, assustando todo mundo, mas já estavam lá à espreita.
Não praticando a censura, e sendo impossível saber ao certo os motivos que levam autores como Henry Miller, a adotar aquele tipo de narrativa; em outras palavras: quais brechas eles tentavam evitar adotando tal coisa, talvez fosse bom se manter aberto a um número maior de possibilidades. E considerá-las mais profunda e amplamente. Tentar eliminar vai em caminho contrário à necessidade de se debater algo, que não desaparecerá só por que não gostamos que exista.
Determinados temas instigam um autor. Sua indiferença, igualmente, não o livraria dos questionamentos. E pode ser que ele simplesmente não queira se livrar deles. É seu direito se expressar, assim como um dever assumir responsabilidades, segundo o nosso contrato social. Enfatizar a cada texto o que é ou não é ficção, pode ser algo como explicar um poema, contar o final do filme, estragar a piada, dedurar os segredos do mágico, queimar livros em praça pública.
O uso do alter ego ou do "eu lírico", ainda que torne tênue a linha que divide a ficção do biográfico, pode ser justamente o cuidado que o autor toma, para que aquilo nunca seja confundido com revelação de verdades que se pretendam absolutas, o exemplo a ser seguido, a profecia dos novos tempos, messianismo de qualquer tipo.
É meramente uma provocação. Um chamado ao debate. É relato pessoal, ainda que ficcional, pode fazer sentido para mais alguém, mas não se arvora como escola. Como Nietzsche, por exemplo, não deixou arvorar religião através do seu Zaratustra e do seu Gaia Ciência. Obras em que ele adotou maneiras inusuais de comunicar filosofia. E, talvez por isso, textos que comunicaram tão bem as urgências da época.
março, 2022
Daniel Ricardo Barbosa (Uberaba/MG). Autor dos livros Elo, entrelinhas e alucinações e Os nomes na máquina, participou de várias coletâneas impressas e digitais de poemas. Pode ser contatado em seus perfis no Facebook e Instagram, onde mantém constantes publicações.