A beleza da mulher
A mulher veio de uma estrela.
A sua beleza incendeia as casas, as árvores, a água.
O azul empalidece com a sua beleza.
Extasiado com a sua beleza, o meu sangue inunda as flores.
Os meus dedos tateiam reverentes a mulher.
O meu coração ama quanto pode um coração amar.
A mulher é nítida como um cachorro latindo.
Voa suave como uma borboleta.
Perco o fôlego com a beleza da mulher.
A Vênus de Willendorf
Eu sou essa Vênus, eu sou essa mulher.
Ela me deu à luz por cima do tempo
eu vim dessa deusa há milhares de anos
a sua voz é a minha voz.
Sou filho da palavra viajante do tempo.
Sou filho da imagem
a palavra nasce da imagem
a imagem é a mãe do ser.
Sou filho do poema do tempo.
Campo de Flores
Puseram uma máscara de ferro
na cara de Giordano Bruno
quando foi queimado no Campo de Fiori.
Tinham medo que comovesse o povo
com as suas palavras.
Comove até hoje com o seu silêncio.
A poesia de Giordano Bruno está no que ele não disse
por detrás da máscara de ferro.
Passeio entre as ruínas
Um pássaro azul canta num galho seco.
Tomo um vaso nas mãos: um menino e uma menina
pintados na parede côncava do vaso.
Não se vê nenhuma imagem do mar, mas podem-se ouvir
as suas ondas — basta aproximar o vaso dos ouvidos.
Pode-se ouvir todo o mistério do mar, o seu abismo sem fundo,
nesse antiquíssimo vaso quebrado.
Olho uma pequena poça d'água e imagino as ondas
do mar inumerável.
O pássaro azul voa muito alto, volta e continua a cantar.
A morte de Li Po
Li Po num barco no lago calmo
olha a lua no céu sem nuvens,
olha a lua refletida na água.
Li Po fica em pé no barco,
caminha para a lua no alto,
caminha para a lua no lago.
Cai do barco e some na água,
foi se encontrar com a lua no céu,
foi se encontrar com a lua no lago.
O pavão morto
Nós vestimos a mesma solidão.
O poema interroga
o barro e a sombra,
as imagens do abismo,
o sangue cego.
A dor é a véspera da beleza.
As estrelas e o escorpião
No deserto estou rodeado de homens
na multidão estou só.
No espelho não me vejo
somente com os olhos vazados verei a mim mesmo
e aos outros homens.
Se estou vivo nada sei da morte.
Somente com a morte me libertarei do outro.
Quebrei relógios como quebrei espelhos
serei sempre o afogado à beira do buraco negro.
A tartaruga
Disse a tartaruga:
Devagar se vai ao longe,
e parou um pouco.
O menino morto
A pedra sangra coberta de flores,
o sangue flui dos olhos da pedra
sobre o menino morto.
Um cachorro sofre ao lado,
vai se transformar em pedra.
O Papa-figo
A criançada corre do velho
com um saco nas costas
O velho enfia as crianças
no saco pingando sangue
Depois arranca o fígado
e dá para o lobisomem
Dizem que no Palácio do Planalto
mora um Papa-figo
Uma faca sem lâmina
Uma faca sem lâmina
a lâmina sem sangue
A faca sem notícia
a notícia sem sangue
Os lenços brancos sobre
a barriga furada
A barriga sem sangue
ainda grita o slogan
"Atentado! Atentado!"
A faca sem lâmina
ganhou as eleições
Casa 58
Uma voz fala no vazio —
voz de quem não estava lá.
A vida é feita de mistérios.
Quem atirou? E quem mandou?
A voz do enigma não se cala —
o mordomo estava na sala?
O porteiro que se enganou?
Mas quem o crime planejou?
Mas quem o crime festejou?
A festa que mal começou
e gente santa festejava —
era uma comunista a menos.
Os assassinos aplaudiram
a morte crua de Marielle
porque o comunismo não presta.
Perdi a fé na humanidade —
trazemos a morte nos dedos,
trazemos a morte na língua.
junho, 2022
José Carlos Brandão é autor de oito livros de poesia e um de crônicas. Ganhou vários prêmios literários, como V Bienal Nestlé de Literatura, 1991, por Presença da Morte; "José Ermírio de Moraes", 1984, por Exílio; "Jorge de Lima", da U.B.E.-Rio, 2011, por Livro dos bichos; Cidade de Belo Horizonte, por um romance inédito, 2000; Brasília de Literatura, por um livro de poesia inédito, 1991. Está lançando O país impossível, poesia, pela Editora Plante, de Bauru/SP e O afinador de silêncios, crônicas, pela Editora Folheando, Belém/PA. Mantém o blogue Poesia Crônica.
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