[Com ilustrações da autora]

 

 

 

> Absoluto

 

 

Inverno boreal. Num entardecer frio e nebuloso, com um vento de cortar a alma, ele se revelou. Subitamente. Zás.

Num simples encostar dos cílios, eu comecei a persegui-lo. Foi deslumbramento no primeiro rastro. No segundo rastro eu já estava apaixonado.

Ele era teatralmente tão incomum! Passos firmes e ao mesmo tempo elegantes e delicados. Vestido feito uma divindade, seu corpo envolvido num casaco esvoaçante, rosto acompanhado de longos cabelos brancos levemente ondulados, que refletiam a luz do crepúsculo…

Caminhamos em transe, com movimentos serenos e silenciosos.

Entramos. Nunca em minha vida eu havia frequentado um bar tão sofisticado. Ele cumprimentou todos efusivamente, mas com uma educação refinadíssima. Trocou palavras em japonês, francês e alemão. Eu apenas soltava grunhidos em inglês.

Exigiu um champanhe Dom Perignon Vintage Brut e dois cálices. Esperou por quinze minutos seu convidado especial, mas ninguém apareceu. Levantou-se e saiu de mãos vazias. Percorreu mais de cento e quinze bares do mesmo estilo, fazendo sempre o mesmo pedido.

Depois de quinze minutos cravados, partia, sem levar nada.

Eu o seguia de perto. Meu corpo já estava cansado, ofegante, eu me arrastava com sofreguidão. Mas ele continuava charmoso, com seus passos de bailarino. Com sua voz de barítono, aveludada, que a todos encantava.

Pela exaustão, creio eu, ou por puro ciúme… comecei a sentir algo doloroso nas entranhas. Uma raiva que a cada minuto crescia e me consumia.

Então ele desistiu do encontro, ninguém apareceu. (Isso também sempre acontece comigo.)

Caminhou lentamente em direção ao parque e foi direto para a ponte que atravessa o lago. Que belo retrato pintado por Modigliani! Com a intensa luz do luar e o reflexo da água, ele se tornou mais esguio e harmonioso.

O meu amor, a cada minuto, se transformava em rancor, depois em ódio, e assim eu comecei a tropeçar em seus longos cabelos brancos levemente ondulados. Haviam crescido e se enroscavam em meus sapatos indecentes. Tenho os passos arrastados, que dificultam meu andar.

Abominando ser apenas sua sombra, eu quis dar um basta, mas ele me arrastava com toda a sua delicada energia vital. Eu caía e me levantava o tempo todo. O que me dava forças era o aroma de flores e ervas silvestres que dele emanava.

Calafrios até a falange distal do quinto dedo mínimo do pé esquerdo… Algo dentro de mim se desfigurou.

Agora eu só queria destruí-lo com as minhas próprias mãos. Como ele poderia ser tão perfeito e tão sublime?! E eu, esta obscuridade mesquinha, solitária, amarga e opaca?!

De repente ele se voltou e me encarou. Com um olhar maquiavélico e ao mesmo tempo angelical, ele simplesmente colocou toda a culpa em mim.

Sou mesmo culpado?! Perfume sensual… Agarro com toda a força seu pescoço longilíneo e sedoso. Eu o sufoco com minhas mãos ásperas e frias. E trêmulas.

Que personagem divino! Até em seu último suspiro ele foi de uma delicadeza e de uma nobreza raras.

Sempre ouvi murmúrios, lamentos, sobre isso… Então, nunca confie em sua própria sombra. Aprenda. Na Terra número dois existe um menecma pra cada ser humano.

 

 

 

 

 

 

> Uma menina estranha

 

 

A Menina Estranha Que Estranhava Tudo.

Ela mesmo!

Desde muito pequena, ela não sabia o que fazer com as suas mãozonas… achava-as estranhas.

Decidiu, então, enfiar a mãozona esquerda na boca. Gostou! E acabou enfiando a mãozona direita também.

Dessa forma, com as duas mãozonas presas na boca, ela não conseguia mais falar.

E todos perguntavam:

— Mas, cacete, por que você enfiou as mãos na boca?!

A Menina Estranha Que Estranhava Tudo não conseguia responder, ela apenas pisca-piscava os olhinhos serelepes. Primeiro o esquerdo e depois o direito.

A Menina Estranha Que Estranhava Tudo cansou de piscar.

E numa certa manhã bem estranha e fria, resolveu retirar a mãozona direita da boca, e depois a mãozona esquerda.

Quando sua mãe viu isso — a filha sem as mãos na boca —, a mulher esticou um grito pavoroso.

A Menina Estranha Que Estranhava Tudo estava com uma bocarra enorme. Grande mesmo! E pra se defender do grito esticado da mãe ela enfiou as mãozonas nos ouvidos.

E todos pensaram que A Menina Estranha Que Estranhava Tudo tinha ficado com a bocarra arregalada devido à gritaria elástica da mãe. Grande mal-entendido!

E todos perguntavam:

— Mas, cacete, por que você enfiou as mãos nos ouvidos?!

A Menina Estranha Que Estranhava Tudo não conseguia escutar o que as pessoas falavam, e apenas fechava e abria a bocarra, emitindo um som agudo que mais parecia um miado fanhoso.

A Menina Estranha Que Estranhava Tudo cansou de não escutar nada.

E numa certa manhã bem estranha e fria, resolveu retirar a mãozona direita do ouvido, e depois a mãozona esquerda.

Quando sua mãe viu isso — a filha sem as mãos nos ouvidos —, a mulher esticou novamente um grito pavoroso.

A Menina Estranha Que Estranhava Tudo estava com os ouvidos enormes. Grandes mesmo! E pra se defender do grito esticado da mãe ela enfiou as mãozonas dentro dos olhos. Fez isso pra não enxergar, dessa vez, o pai gritando apavorado também.

 

 

 

 

 

 

> MIMIMI

 

 

Minha cabeça fica lotada de MIMIMI de tanto MIMIMI que eu escuto diariamente.

O primeiro a me acordar com seu MIMIMI é o nosso gato MIMI. Logo em seguida, lá vem o MIMIMI do meu marido. Depois o MIMIMI de nossos filhos MIMIMImados.

Minha rotina começa depois que faço minha caminhada diária, deixando todo o MIMIMI em casa e saindo pra andar com a cabeça vazia, pelo menos durante esses quarenta minutos. Isso quando não encontro a rainha do MIMIMI: minha vizinha e melhor amiga. Feito uma boa samaritana, eu sigo escutando atentamente o MIMIMI dela.

Volto pra casa e logo na chegada vem o MIMIMI do entregador de jornal. É, sim, no café da manhã ainda preferimos ler o jornal MIMIMI impresso em papel. E agora que todo o MIMIMI do café matinal ficou pra trás, me preparo pra enfrentar o MIMIMI do trabalho.

Mal passo pela portaria-putaria da empresa MIMIMI e começo a escutar o altíssimo MIMIMI de um grupo reunido diante da porta do elevador MIMIMI. Gente do primeiro andar. Não aguento, não entendo por que esses caras não sobem apenas um lance de escada? E lá vou eu pela escada, até o sétimo andar. Nem assim consigo me livrar do MIMIMI. Encontro uma colega do terceiro andar e lá vou eu arfando e escutando o MIMIMI financeiro do fulano.

Chegando ao meu andar, um grupinho MIMIMI está enrolando perto da máquina MIMIMI de café. Tento me desviar, mas alguém me pega pelo braço e brinca comigo, me chamando de melindrosa antissociável. Eu dou um sorriso MIMIMI e digo que estou atrasada pra uma reunião MIMIMI.

Consigo chegar incógnita à minha sala, mas quando abro a porta minha secretária já está cheia de MIMIMIs pra eu escutar, revisar e assinar.

Nessa hora eu explodo e solto um baita MIMIMI e saio correndo, tiro toda a roupa e os sapatos e escapo na direção das escadas e desço em disparada pra rua, atravesso a avenida MIMIMI sem olhar e vou direto pro mar. Esqueci de dizer aí em cima: eu moro numa cidade litorânea.

Mergulho, sinto a água fresca banhar meu corpo, e finalmente relaxo. Mas não é que o andar inteiro do meu departamento MIMIMI veio atrás de mim? Eu olho incrédula pra todos os idiotas e só escuto os mais disparatados MIMIMIs. Minha cabeça começa a inchar, inchar, inchar e de repente explode.

Milhares de MIMIMIs saem de meu crânio e começam a afogar todos os outros MIMIMIs.

Juro que não era minha intenção, eu só queria um pouco de paz. Mas de certa forma saio ganhando. Sou internada numa casa de repouso, num quarto individual. Enfim… agora estou sozinha, apenas com meus pensamentos.

Uma enfermeira vem me visitar de hora em hora, mas nada de MIMIMI. O médico também vem fazer a sua visita diária, mas também sem nenhum MIMIMI. Dizem que o MIMIMI é a dor que não dói no corpo da gente, mas afeta nossa mente e enche de merda nossa cabeça. Ah, enche mesmo. Porra, como enche! ENCHE PRA CARALHO!

 

 

[Do livro mundomissíssimo. Líquido Editorial, 2022. Clique aqui e saiba mais]

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junho, 2022



Tereza Yamashita rabisca histórias gritadas, líquidas e redondas. Da cor do sol nascente. Filha da cerâmica e do origami. Sobrevivente da Covid-19 e da necropolítica. Não nasceu… germinou. Em suas artérias, a seiva. Ao respirar, emana pólen. Sob o signo de Serpente e Câncer, se fecha em pérola, e exala uma fragrância cósmica. Não se decidiu ainda se é vegetal ou mineral, mas está tentando virar zen-budista. Queria mesmo era ser uma felina da cor da Terra. Mas é feita de matéria estelar, sendo dobrada e desdobrada há́ milênios. Num susto digital, ganhou um Jabuti. Foi personagem de mangá e animê, e já́ participou da Quinta Revolução Industrial. Fez parte da Sociedade 5 e da geração HandMakers. Hoje, vagando no espaço sideral, procura um buraco negro ou colorido pra se jogar de cabeça e experimentar uma vertigem radical. Vivências de cristal…

 

Mais Tereza Yamashita na Germina

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