© thomas wolter

 
 
 
 

 
 
 
 
 

INOMINADO E DÚBIO

 

 

Eu tenho ciência

que a mosca está em pé de igualdade

comigo: estamos no mesmo mundo.

 

Lá fora, giram os quintais em sua órbita,

um céu se acende

as árvores fazem suas preces.

 

Eu e a mosca

continuamos espantados

como se os nossos pés

ainda experimentassem o mundo

 

e o voo fosse opcional

para um de nós.

 

 

 

 

 

 

UM PASTO

 

 

Uma vaca não é aquilo

que dizem dela

mas o que importa?

Para um poema, é uma

mesa sobre o pasto.

Para o fazendeiro

é uma compota viva de leite.

Para a paisagem,

preta e branca sobre o verde.

A vaca, claro, rumina o poema

o fazendeiro, a paisagem.

 

 

 

 

 

 

JOGOS INFANTIS

 

 

Éramos todos planetas

dentro das pupilas das bolinhas de gude

Algumas seguindo as leis de Newton

outras, da incerteza mais plena.

 

O chão a tudo colhia, carros de lata,

pés céleres atrás da bola de meia de pé

nessas ilhas sem Crusoé.

 

No alto, numa panorâmica, a pipa

segurando o céu (como uma isca)

 

O coração ainda era um brinquedo a desembrulhar.

 

 

 

 

 

 

FIAT GATO

 

 

Entre todas as coisas criadas

um gato não está nem aí

para as coisas criadas

 

Na hora que nomearam

todas as coisas um gato

pediu licença e saiu

 

E voltou já feito, coisa e nome

— Que o paraíso deles

é outra coisa.

 

 

 

 

 

 

A TARTARUGA

 

 

Tem um quê de pedra

que não se atira.

 

(eremita em sua caverna

sem ideia de Platão)

 

Aciona sua casa

por controle remoto

quando se pilha

em movimento.

 

Sempre em sua direção

corre o tempo.

 

 

 

 

 

 

2 POEMAS DOMICILIARES

 

 

[Aluguel]

 

 

Vivo numa casa chamada

corpo, que não quitei

 

e que perambula, serpente

de atalhos. Daí meu endereço

 

quase em bote nunca é o

mesmo: a casa em que

 

habito, embora durmo ao

relento, pois quanto mais

 

me fecho, mais fora fico

de mim, a casa que a duras

 

penas sou eu, a casa de berço

e de cova, futura ruína

 

em que pergunto de mim

à porta.

 

 

 

[Somos uma casa]

 

 

Somos uma casa provisória.

Os fantasmas confabulam

que assombro somos nós.

 

Vivemos nos cômodos:

corredor da memória, quartos

que se alternam: escuros, claros.

 

Somos uma casa pronta a partir:

a rua é uma linha lançada

e puxamos, liberdade.

 

Pena a casa não entender

que somos provisórios,

a casa que somos, também provisória.

 

 

 

 

 

 

BREVE ODE AO FÓSFORO

 

 

Há um quê de rispidez

na brevíssima decolagem

que o palito faz (arisco)

da caixa ao ar:

 

este portátil prometeu

não se nega a mais que isto.

E tem mais o que fazer?

Viver já é atrito. 

setembro, 2022



André Ricardo Aguiar é escritor, autor de obras infantis, poemas e contos. Publicou O rato que roeu o rei (Rocco) e Chá de sumiço e outros poemas assombrados (Autêntica). Pela Patuá publicou A idade das chuvas (poesia) e Fábulas portáteis (contos). E em outras obras recentes, Da existência enquanto gato (Confraria do vento) e Agulhas no palheiro (Mondrongo).

 

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