FALTA
Demasiado humano,
viver, não é segredo,
dói, salvo engano.
A fita acaba sem aviso.
A luz apaga, cai
o pano.
O locutor engasga,
é bom ficar piano:
um soneto de Petrarca,
uma falta de Júnior Baiano.
FELICIDADE ALHEIA
A felicidade alheia me fere.
A felicidade alheia me oprime.
A felicidade alheia me faz pensar em desistir.
Passo horas na internet, investigando até onde vai a brincadeira.
Passo horas sofrendo, lendo posts e mais posts.
Um sofrimento gostoso.
Um sofrimento justo.
Um sofrimento necessário.
Às vezes penso em jogar a toalha,
mas a felicidade alheia me redime,
a felicidade alheia me alimenta,
a felicidade alheia me salva.
Só ela pode me salvar.
Tenho raiva de tudo o que não seja a felicidade alheia.
Tenho muita raiva.
Você não faz ideia.
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DIZEM QUE O MUNDO É UM LUGAR ENGRAÇADO
Eu vi Peter Pan despencar sobre a plateia
durante espetáculo no Teatro Marília.
As crianças, em choque, foram retiradas do local.
Eu vi Magali mijando atrás de uma pilastra
no Parque da Mônica. Por fim, sacudiu o pau,
colocou novamente a máscara e voltou ao trabalho.
Eu vi Beto Carrero e o cavalo Faísca derraparem
na fina camada de areia e saírem pela tangente
naquela tarde no ginásio do Mineirinho.
Por muitos anos tentei me convencer
de que tudo isso não passou de invenção.
Ainda tenho minhas dúvidas.
[Poemas do livro Tudo pronto para o fim do mundo, 2019]
PERGUNTAS EM TORNO DE UMA FESTA
Imagine-se em uma festa, dançando.
A música é do tipo A, e você dança de um jeito do tipo B.
Você estará no ritmo?
Você estará na realidade da festa?
Os outros irão querer dançar com você?
Você acha que será respeitado?
Não seria melhor ir para outra festa?
Ou você preferiria um lugar com cinco tipos de música tocando ao mesmo tempo?
Ou ainda um lugar onde não haja música, dança ou pessoas?
Que tipo de festa você costuma frequentar?
Com que tipo de gente você costuma se envolver?
Você responderia a essas perguntas com convicção?
Tem uma opinião formada sobre o assunto?
Pagaria para ver até aonde vai a curiosidade alheia?
Precisa de um tempo para pensar?
SIDO VISTO
Nenhum registro
do que vi.
Nenhum vestígio
de onde estive.
O meu indício
é, insisto,
somente o fato
de ter sido
visto vivo.
QUEM TEM MEDO DO FRANGO ASSADO?
Todos olham e enxergam o frango assado.
Todos os caminhos levam ao frango assado.
Tudo o que se vê, tudo o que se ouve,
o cheiro das ruas vem do frango assado.
O frango assado anda de um lado para o outro.
Está visivelmente confuso.
33 BLEFES
Pela terceira vez tomamos o caminho errado.
Sem alarde, redesenhamos o mapa de forma a ajustar
nossa atual posição à rota pretendida.
*
O mundo dá muitas voltas. Não consegue ir direto ao assunto.
*
Pode gritar,
mas grita baixo.
*
Conforme imaginamos, não era nada do que imaginávamos.
*
Nenhuma rodoviária é feliz.
*
Todo mundo atrasado
pra uma festa que nunca
vai acontecer.
*
O vizinho mala do 202 insiste em ouvir Djavan no domingo às dez da noite. O vizinho mala do 202 sou eu.
*
Todos dormem.
Chaminés expelem
o seu pólen.
*
A alegria tem um sabor
que não sei explicar.
Lembra frango.
*
O coração dispara como um rifle.
*
Há muito tempo não digo uma palavra.
Há muito tempo não ando pela rua.
Há muito tempo não sei mais o meu nome.
Há muito tempo deixei de respirar.
Minha cabeça agora boia
numa panela de feijão.
*
Milagres sob encomenda.
*
Deserto de estimação.
*
Pássaros trincam. Carneiros explodem.
*
o erro irrisório enrique o repertório
*
Era uma vez um sujeito feliz para sempre.
*
era um cara
temperamental
temperava tudo
com água e sal
preparava
e jogava fora,
destemperado
*
Ficava compenetrado, como se algo de extraordinário estivesse acontecendo. Levava tudo muito a sério aquele bezerro.
*
A morte não vai a lugar algum.
*
Alguém desvela seus sonhos: não ouço palavras, apenas o ruído constante do sono enquanto a cidade desperta com o afago do tráfego.
*
Um buraco com um abismo dentro.
*
Ando pela cidade
fingindo estar apressado
para que não percebam
que vou a lugar nenhum.
*
Aqui. Sob o céu de abril. Produzindo lixo. Engordando.
*
Natureza-morta com bananas e granadas. Óleo sobre tela, 35 × 46 cm.
*
Soaria irônico se eu dissesse
que Oliver, o Pato, ligou há alguns
dias fazendo estranhas revelações.
*
Aplausos dependurados no teto.
*
depois dos
etcéteras
a ala dos penetras
*
Um anjo porco, desses que vivem de sobras.
*
Um desconhecido
me pergunta as horas.
Faltam dez minutos.
*
Sonhei que infartava na sorveteria
*
sempre que reparo
minha sombra
me ultrapassa
se amarrota
no entanto
se a assopro
*
Minhas roupas estão ficando velhas.
Meus chinelos estão ficando lentos.
Já não me lembro onde deixei meus retratos.
*
O movimento de rotação dos cata-ventos,
as buzinas dos vendedores de algodão-doce
e o apito dos amoladores de facas
não dizem outra coisa senão que as coisas
estão exatamente onde deveriam estar.
[Poemas do livro Mastodontes na sala de espera, 2011]
ANÔNIMO
Onde você estava no dia onze de agosto de mil novecentos e trinta e quatro?
No Natal de setenta e sete,
no inverno de mil duzentos e treze?
Onde você se encontrava na madrugada do dia vinte para o próximo dia,
primeiro de janeiro do ano passado,
primavera de sessenta e nove
do século quarto?
Onde você passava quando já era tarde
e ninguém te chamava
naquela noite dos anos dourados?
Quando tudo acontecia e sumia sem deixar rastros, por onde você andava?
§
No fim do arco-íris existe um pote
dentro do pote um gnomo
que diz:
Me chupa com violência
[Poemas do livro Cada, 2007]
março, 2022
Bruno Brum nasceu em Belo Horizonte, em janeiro de 1981. É poeta e designer gráfico. Publicou os livros Mínima ideia (2004), Cada (2007), Mastodontes na sala de espera (2011, vencedor do Prêmio Governo de Minas Gerais de Literatura, na categoria Poesia, em 2010) e Tudo pronto para o fim do mundo (2019). Idealizou e foi editor da Coleção Leve um Livro, que entre 2015 e 2017 distribuiu, de forma gratuita, 180 mil livros de poesia nas ruas da capital mineira. Tem trabalhos publicados em periódicos e antologias no México, na Argentina, no Peru, no Paraguai, na Espanha e nos EUA. Atualmente vive em Monte Santo de Minas/MG.
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