EPÍLOGO
Arena. Ext. Tarde. (Plano sequência)
a fera me segura com os dentes e me arrasta
pelo chão de terra
dilacera minha pele
depois me lambe as feridas com sua língua
ora comprida
ora breve
(as feridas ardem úmidas, mas isso não se vê)
a fera me observa e hesita
(Fade out)
(Fade in). Arena. Ext. Fim de tarde
a fera me observa e hesita
exausta quase extinta
levanto a cabeça e busco
seus olhos
(Contraplano)
a besta me observa e ruge
mas desiste da luta
me abandona e sai de cena
(carrega um espelho no lombo)
[Sobe som: adágio largo pianíssimo]
(Corte seco. Tela preta. Áudio da trilha em fade out)
Arena. Ext. Começo de noite
já não há fera
nem aplausos
vaias
vivas
trilha sonora
nem flores beijadas
somente eu me finando inteira
meu sangue secando na areia
(Zoom out com drone. Sem áudio).
SALTO
daqui a dois passos
posso despencar num abismo
e nunca chegar ao fundo
ou
tropeçar e cair no chão árido
das margens do buraco
e me salvar da queda livre
ou
construir uma ponte pênsil
e atravessar a garganta
onde lá embaixo ruge o rio turvo
ou
desenhar um trampolim
pronto para o mergulho
e saltar de olhos fechados
ou
tecer uma teia no vazio
e me enredar nela
para capturar insetos e comê-los inteiros
mortos ou vivos
se estiver com fome
ou
chegar a um espelho d'água
onde enxergue minha imagem refletida
e ela me diga: teu nome é narciso
ou
acorrentar meus tornozelos
a uma pedra imensa
com destreza formidável
então
bater muitas vezes as asas que não tenho
para alçar voo sobre o vale
de onde veria que tudo se move
ou
perceber simplesmente
que o espaço
é o cumprimento
do tempo
VÉSPERA
Adivinha o tempo
Se erra o palpite
É por poucos minutos
Ninguém percebe essa habilidade
Que ela disfarça
Com seus acessos de tosse
Sua insônia imóvel
Suas unhas pintadas de vermelho vivo
Seus pés de caminho
Nos fins de noite, engole o escuro
E amanhece
Não se oferece ao banquete de Cronos:
É devorada aos poucos, a cada dia
Por um sentido de véspera
Aprendeu a respirar
Na espera
SONHO
tira a roupa e joga no cesto do banheiro
abre os poros e as torneiras
(a quente é a da esquerda)
abre tudo, até o vapor subir e embaçar
o espelho
tempera a água e entra
ocupa com o corpo lasso o espaço exíguo
cuidando para não pisar no ralo e ser sugada
lava todos os quadrantes
(menos os cabelos, porque já é tarde)
chora no chuveiro vertendo esperas
estanca a água
sai do box anfíbia
seca-se com uma toalha áspera
o corpo e o rosto
no quarto, apaga as luzes
e se senta na cama
réptil
deita-se de lado, sinuosa
fecha olhos e ouvidos
adormece transpirando as horas
sonha com a via láctea
manhã seguinte, acorda
humana
ossos recompostos
pele apaziguada
levanta, pisa no assoalho
um pé
depois o outro
os dois, devagar
sentem as estrelas no chão móvel
é bom poder andar descalça
MOVEDIÇA
entre as palavras que penso e as que escrevo
há um sulco profundo
pântano movediço escuro úmido
sentido insuficiente inexato
abismo semântico
um ontem que não se atualiza
neste hoje fugidio
amanhã que se antecipa
no segundo que agora se vai
palavra que emito é corda roída
infância desencontrada
carne adulta moída
juventude postergada
tiras de pele em camadas
verbo nu que flutua
entre o não ser e o ser nada
GRITO
Pactua o insilêncio
E que o sentido nasça da
Fricção das tuas palavras
Deixa verter o verbo
Fagulha no rastilho
Que incendeia a mata seca
Grita alto
Mais alto
Mais ainda
Para que te ouçam longe
Além das águas, das cercas, prédios
Montanhas, árvores
Décadas
Se te calas
Perdes a trilha
Porque os pássaros já comeram
As migalhas de pão
Que te marcaram
O caminho da vinda
CIDADE
O cego
esconde os olhos
O surdo
os ouvidos
O mudo
gesticula no vácuo
O invisível
atravessa a avenida
O lúcido
escolhe a loucura
O louco
sobrevive a ela
O desvalido
atira-se da ponte
O otimista
caminha nela
O jovem
esquece o tempo
O velho
fala aos passantes
O apressado
detesta domingo
O sem pressa
prefere cinema
O rico
arrota mais vezes
O faminto
cata migalhas do chão
e as come
para matar pedaços
de fome
CAMINHO
estão me faltando pedaços
é o efeito do tempo
frágeis alegrias já não me sustentam
coisas úteis
se fugazes
se desprendem e caem do fio das certezas
piso nelas e me machuco
mas meus pés criam casca
ECOS
uma música íntima
informa o ar
aroma de ecos
reflexos de mar
certeza de eras
dúvidas
pesar
visito o tempo
no leme de um barco
mas não sei navegar
FLAGRANTE
todo mundo pode ser pego
basta um segundo uma sombra um enredo
basta um bocado de acaso
ou de medo
todo mundo pode ser pego
com os poros abertos
os membros eretos
os sonhos rasgados em lençóis incertos
todo mundo pode ser pego
saindo com as calças na mão
os olhos mais úmidos que o coração
CORPO
o sopro
do corpo
no pulso
do peito
o corpo
do sopro
no peito
do pulso
o pulso
do sopro
no peito
do corpo
o corpo
do pulso
no sopro
do peito
o pulso do pulso
o peito do peito
o sopro do sopro
só pro corpo
NOSSA
carne
se crua
ou tua
ou minha
carne nua
se nossa
que possa
ser carne
debaixo
da pele
vibrando
vibrando
março, 2022
Deborah Dornellas é escritora, jornalista e aprendiz de artista plástica. Mestra em História (UnB) e pós-graduada em Formação de Escritores (ISE Vera Cruz). Em 2012, publicou Triz (In House), reunião de poemas. Desde 2013, integra o Coletivo Literário Martelinho de Ouro, de São Paulo. Foi finalista duas vezes do Prêmio OFF FLIP (2015 poesia – 5º lugar; 2016, conto) e uma vez do Prêmio Sesc-DF de Contos Machado de Assis (2016). Por cima do mar (Patuá, 2018), seu romance de estreia, foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura 2019 e venceu o Prêmio Literário Casa de las Américas 2019, na categoria "Literatura Brasileira".
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