PALAVRA "SANGUE"
Não sou homem de pedir socorro.
Mordo a língua,
trinco os dentes,
mordo os lábios.
Apanho pedras,
com que esfrego as feridas.
Este golpe no flanco?
Foi minha mão.
("Comigo me desavim,
sou posto em todo perigo...")
Eu mesmo meu melhor inimigo.
Mas se caio, levanto.
E com perna quebrada,
fogo no estômago,
olho vazado,
pau vertendo pus,
eu sigo caminho.
Não sou homem de pedir socorro.
Mordo a língua,
trinco os dentes,
mordo os lábios.
Engulo com gosto a palavra "sangue".
EIS O OFÍCIO
do poeta)
fazer sua língua
língua estrangeira
eis o ofício) e
nessa língua
buscar seu exílio
(do poeta
mesmo o asilo
negado (eis
o ofício) o
visto indeferido
a língua
materna (do poeta
fazê-la madrasta
fazê-la pedestre
(eis o ofício
caminhar no
deserto sem
mapa ou (do
poeta) destino
viver em perigo
(eis o ofício
NÃO CICATRIZA
Escrever como quem saca
uma faca
e fere de morte
a pessoa amada.
Escrever como quem
pronto socorre,
aninha no colo,
pensa as feridas.
Escrever o que corta,
o que cura,
o que não cicatriza.
SE MORRER FOSSE FÁCIL
Se morrer fosse fácil
como dar a descarga,
eu não hesitaria.
Sentado no vaso sanitário,
penso no dia que começa
e logo mais terá seu fim.
O que faz com que alguém não desista,
com que um homem insista:
a mesma manhã,
a mesma tarde depois,
horas que vão pelos dias,
dias que vão pelos meses,
meses que vão pelos anos,
como excrementos pelo cano?
Ponho água para ferver,
passo manteiga no pão,
deixo intacto o jornal.
Sabiás fizeram ninho
num dos vasos da varanda.
Gerânios explodem
em verde e vermelho.
Um andante de Galuppi
não me sai dos ouvidos.
(Lembro de repente de meu pai,
barbeado e bem disposto,
às seis horas da manhã.
Cantando singela cantiga,
ele acende a luz de nosso quarto,
acorda a todos com gosto.)
Bebo um gole de café,
leio sem pressa o jornal,
dou uma mordida no pão,
mastigo, mastigo,
mastigo.
Lá fora está frio e nublado,
mas a previsão para o dia
é de sol e remissão.
DUAS METADES
1.
No espelho do quarto,
rosto cindido,
as duas metades da manhã:
a que emerge da noite
e a outra, já sol a pino.
2.
Na mesa da copa,
fruto partido,
as duas metades da maçã:
a que se agarra ao galho
e a outra, murcha no chão.
ENTRE
(novas voltas sobre mote de Leminski)
entre o sopro
e o apagar da vela
entre o tiro
e o tombar da presa
entre a onda
e o quebrar na pedra
entre o sono
e sonhar centelhas
entre a noite
e a manhã desperta
entre o brilho
e o morrer da estrela
entre a vida
e viver deveras
O PÁSSARO DA VOZ
para Leila Pinheiro
Esse pássaro que passa
Pela voz quando se canta
Essa voz que se compassa
E no canto se decanta
Esse canto que tem asa
E se alça contra o vento
Essa asa que se espraia
Sobre o azul, sobre o cinzento
Sobre o sol que se dissolve
De oriente a ocidente
Sol que em lua se resolve
Lua nova já crescente
Com seu halo de alegria
Com seu toque de quebranto
Eis no céu da fantasia
Teu fervor, meu acalanto
DOIS SONETILHOS
(Ele:)
Surdo e cego
Mal comigo
Te persigo
Não sossego
Me embriago
Dobro o jogo
Boto fogo
Faço estrago
Mas se rogo
Nessa briga
Tanta praga
Logo logro
Minha amiga
Tua paga
*
(Ela:)
Tua praga
Meu amigo
Puro logro
Quanto à paga
Antes digo
Abra o jogo
Não te rogo
Que divague
Que te engasgue
Fale logo
Na refrega
Esta amiga
Nem se intriga
Nem se entrega
HÍFEN
"Foto do pôr do sol ainda tem hífen?"
Há maravilhas que se dizem assim,
espontaneamente,
às duas da manhã,
em conversa amiga
numa rede social.
"Acho que não",
poderia ter dito,
mas daí eu teria mentido,
que aquele barco atravessado na praia
era um traço firme na paisagem,
a orientar o sol
para que descesse tranquilo
sem riscos
de encalhar.
Ou talvez o "hífen"
fosse justo
o que não foi dito:
o pássaro que escapou da câmera
e que teria pousado na foto
instantes depois.
"Juntamente", diz o dicionário,
é o que significa,
um advérbio grego.
E com este subterfúgio etimológico,
despeço-me de minha amiga,
desligo o laptop
e encerro o poema.
MARCELO SANDMANN NÃO ESTÁ NO FACEBOOK
"P.S. Eu tenho um novo plano: enlouquecer."
(Fiódor, ao irmão Mikhail)
Marcelo Sandmann não está no Facebook
Marcelo Sandmann não está no Twitter
Marcelo Sandmann não está no Tinder
Marcelo Sandmann está com a macaca
Marcelo Sandmann resolveu dar um tempo
Marcelo Sandmann vai fechar pra balanço
Marcelo Sandmann saiu hoje de férias
Marcelo Sandmann está pra lá de Marrakech
Marcelo Sandmann não torce pro "timão"
Marcelo Sandmann não bebe "a número 1"
Marcelo Sandmann não quer bacalhau
Marcelo Sandmann vai fazer uma fezinha
Marcelo Sandmann engoliu seu voto
Marcelo Sandmann disse a que veio mas não veio
Marcelo Sandmann fez xixi nos vasinhos
Marcelo Sandmann quer se jogar da janela
Marcelo Sandmann não curte pancadão
Marcelo Sandmann não pula carnaval
Marcelo Sandmann é bom da cabeça
Marcelo Sandmann é firme do pé
Marcelo Sandmann cancelou o cartão
Marcelo Sandmann picotou o crachá
Marcelo Sandmann fumou o diploma de Letras
Marcelo Sandmann foi morar na Ilha do Mel
Marcelo Sandmann n'est pas une pipe
Marcelo Sandmann is only rock'n'roll
Marcelo Sandmann? Yes, he can't!
Marcelo Sandmann's Lonely Hearts Club Band
PRIMEIRA COMUNHÃO
(ALTO DA GLÓRIA)
Lembro de Padre Denis,
missionário americano
de sotaque carregado,
verberando pílula e aborto
do alto do púlpito da igreja
de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro.
(Um "alto" que fica "embaixo",
pois a igreja,
em seu interior,
tem a forma de um anfiteatro.)
Sua boca trovejava,
seus olhos relampejavam,
caía sobre nós
uma chuva de enxofre e fogo.
Eu, menino,
me deixava encharcar
daquela santa algaravia.
Que força a da palavra
quando toda entusiasmada!
Pois descanse, saudoso Padre,
já não resta mais perigo.
Os anjos, aí no Céu,
não copulam
nem procriam.
AS MONTANHAS, O MAR, AS CIDADES
(E UMA BREVE CONTRIÇÃO)
Você me levou para conhecer as montanhas
Nas manhãs frias de inverno
O caminho era árduo, a lama entrava nos sapatos
As raízes agarravam nossas pernas
Os galhos riscavam o rosto, os braços
Aquela subida íngreme que jamais tinha fim
Era sal e cansaço o que ali nos dizíamos
Eu, menino, tentando acompanhar a passada
Sem saber se era logro a alegria que você prometia
Mas depois, heróis felizes à luz do meio-dia
Nos ombros do gigante que havíamos prostrado
Contemplávamos o horizonte
E nosso prazer ainda mais se avivava
Na água fresca que bebíamos do cantil
Você me levou para conhecer o mar
Nos dias mais quentes do ano
O sol lambendo firme nossas costas
Caminhávamos dezenas de quilômetros
Na areia dura, na areia mole da praia
Molhando os pés, o rosto, as mãos
Você me dizia coisas que eu jamais saberia
Você que falava tão pouco, quase tanto quanto eu
Depois fazíamos o caminho de volta
Até o guarda-sol, que era aceno e limite
E então corríamos em direção ao mar
Penetrando as ondas, devassando as águas
Livres e felizes eu e você
Livres e felizes no corpo do mar
Você me levou para conhecer as cidades
De outros estados, de outros países
Longes Alemanhas, misteriosas Minas Gerais
E tantas e tantas e tantas mais
Em cada cidade sempre uma igreja
As muitas igrejas que visitamos
Circunspectos, reverentes, mirando os vitrais
As colunas, as abóbodas, o Cristo Crucificado
Sempre um santo a quem acender uma vela
A oração sincera no genuflexório
O sinal da cruz na entrada e na saída
E depois as praças, as ruas palmilhadas
O pão com presunto e queijo que a fome pedia
E o desejo de conquistar o mundo
*
Você me levou para conhecer o mundo
E eu, perdido nesse mesmo mundo
Vez ou outra venho visitar você
Da dura treva da velhice sem memória
Você me olha e não me reconhece
Ou mal me conhece, mas eu conheço você
"Filho, por que me abandonaste?"
Poderia dizer, não diz, jamais irá dizer
E a essa pergunta que por você eu me faço
Dolorosamente me faço
Insuportavelmente me faço
Eu calo a resposta aqui neste poema
Este poema que você não vai ler
Este poema que não vou escrever
[Poemas do livro Não cicatriza. Kotter, 2021]
março, 2022
Marcelo Sandmann nasceu em Curitiba, em 1963. Publicou os livros de poesia Lírico renitente (7Letras, 2000; 2ª ed. 2012), Criptógrafo amador (Medusa, 2006), Na franja dos dias (7Letras, 2012), A fio (7Letras, 2014) Sangue na guelra (7Letras, 2016), Antologia poética (Kotter/Ateliê, 2017) e Não cicatriza (Kotter, 2021). Organizou o livro de ensaios A pau a pedra a fogo a pique: dez estudos sobre a obra de Paulo Leminski, editado pela Secretaria de Estado da Cultura do Paraná em 2010. É também autor de canções, reunidas nos CDs Cantos da palavra (1998), com Benito Rodriguez, Silvia Contursi e Paulo Brandão; Conselho do bom (2014), com Cláudio Menandro e Benito Rodriguez; e No silêncio da canção (2014), do grupo ZiriGdansk. Desde novembro de 2021, assina o blogue Nervo Lírico, de crítica de poesia.
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